Resumo:
Será moralmente defensável o especismo? O presente artigo
defende que devemos ser imparciais, o que implica dar igual consideração aos
interesses relevantemente similares (o que inclui interesses de animais
não-humanos), não importando o portador do interesse. Isso implica, por sua
vez, não apenas em abolir o uso dos animais como
recursos (em oposição a meramente regulamentar para diminuir o sofrimento),
mas, rejeitar o especismo e atender a um interesse de um animal não-humano toda
vez que reconhecermos tal interesse como
digno de ser atendido quando possuído por um humano.
Palavras-chave: Especismo, Igual Consideração,
Abolicionismo, Imparcialidade.
Abstract:
Is speciesism morally defensible? This article argues that
we should be impartial, which means giving equal consideration to relevantly
similar interests (including interests of nonhuman animals), no matter the
carrier of interest. This implies, in turn, not only to abolish the use of
animals as resources (as opposed to merely regulate to lessen the suffering),
but to reject speciesism and to promote an interest of a non-human animal every
time we recognize such interest worthy of consideration when possessed by a
human.
Keywords: Speciesism, Equal Consideration, Abolitionism,
Impartiality
1 - A
situação dos animais não-humanos.
Animais não-humanos são sujeitados rotineiramente a todo
tipo de sofrimento e morte. Somente no uso para alimentação, trilhões deles são
mortos mundialmente a cada ano, sendo que boa parte vive uma vida de intenso
sofrimento nas granjas industriais, o que inclui a produção de ovos e
laticínios[2]. O maior número de animais que humanos matam, contudo, se
encontra na atividade da pesca[3]. O uso não se limita à alimentação. Quase
todo setor da vida humana é marcado por usá-los: pesquisa, testes
laboratoriais, caça, vestuário, entretenimento e na fabricação de quase todo
tipo de produto.
2 - Como
raciocinar sobre questões morais
É amplamente difundida a crença de que, no que diz respeito
a valores morais, qualquer escolha que se faça é igualmente arbitrária. Esse
tipo de reivindicação está presente na idéia de que a ética é relativa à
sociedade em questão (relativismo moral), ou relativa a cada agente (subjetivismo
moral). Tais posições negam à razão (o que implica critérios objetivos) um
papel nas questões éticas.
Uma característica crucial da razão é a generalidade.
Como o filósofo Thomas Nagel observou: "Se eu tiver razões para concluir
ou admitir ou querer fazer algo, estas não poderão ser apenas ‘para mim', mas
deveriam funcionar como justificação para qualquer um que estivesse fazendo o
mesmo, em meu lugar[4]". "A generalidade das razões" continua o
autor "significa que elas se aplicam não somente a circunstâncias
idênticas, mas também a circunstâncias de relevante similaridade - e o que
conta como relevante similaridade ou diferença pode ser explicado por razões da
mesma generalidade[5]".
Defenderei que duas características essenciais da razão (coerência e relevância)
desempenham um papel fundamental em tornar possível o raciocínio sobre ética. A
possibilidade de um raciocínio ético coloca o ônus da prova sobre os ombros das
concepções relativistas/subjetivistas, em provar que não há verdade objetiva
sobre ética, e de que tudo o que podemos chegar por meio do raciocínio em ética
é mera ilusão.
Contudo, qualquer tentativa de desacreditar uma determinada
conclusão em ética, para fazer sentido, terá de vir do próprio raciocínio
ético, assim como
qualquer tentativa de mostrar que um determinado raciocínio matemático está
errado, para fazer sentido, tem de partir do próprio raciocínio matemático. Simples
descrições psicológicas a respeito de como chegamos a ter as crenças que temos,
sejam elas crenças factuais, lógicas, matemáticas ou morais, não tem o poder de
mostrar que tais crenças são injustificadas ou justificadas. Dizer "você
só acredita que o resultado de tal conta é 239 porque seu irmão também acha o
mesmo" não prova que o resultado está errado. Tal prova só seria possível
através de demonstração matemática. Do mesmo modo, dizer "você só acredita
na igualdade porque vive numa sociedade democrática, e acreditaria no contrário
se tivesse nascido numa sociedade de castas" não prova que minha crença de
que a devemos buscar a igualdade está errada, nem prova que é impossível de
haver uma resposta objetiva para a questão "devo buscar a igualdade ou
não?", mesmo que fosse verdade o que tal afirmação descreve (que eu não
acreditaria na igualdade se nascesse num sistema de castas). Responder
"que valores eu teria se...?" não é responder "que valores
alguém deve ter?". A resposta para as perguntas "existem verdades
objetivas em ética?" e "devo escolher a igualdade ou não?" só
podem vir do próprio raciocínio ético. Supondo que fosse verdade que, se eu
tivesse nascido em um local onde vigorasse um sistema de castas, eu acreditasse
que a existência de castas está correta; isso em nada provaria quanto à
justificação ou não das castas, pois seria uma mera descrição psicológica a meu
respeito. Depois de tudo considerado sobre os fatos reais e alternativos
possíveis sobre mim, eu ainda teria de me perguntar: "devo buscar a
igualdade ou não?"; e a resposta dessa pergunta não pode vir do domínio
descritivo (sobre minha cultura, minha psicologia e nem mesmo sobre as
tendências naturais humanas em geral). Isso porque, eu ainda teria de perguntar
"devo seguir o que minha cultura diz?", "devo seguir minhas
inclinações?", "devemos seguir nossas tendências naturais?". Fazer
essas perguntas é essencialmente buscar por uma resposta normativa, que só pode
vir do domínio do raciocínio ético.
O domínio normativo não pode logicamente ser transcendido
pelo domínio descritivo. Pensar o contrário é confundir a verdade sobre uma
questão com nossas crenças (o que pensamos que é a verdade) sobre a resposta
dessa questão. São nossas crenças sobre o que é a verdade que mudam de acordo
com a cultura, tempo e local, mas não a verdade. Se o relativista ou
subjetivista objetar "e, se não houver uma verdade objetiva em
ética?", precisa pretender, para que a objeção faça sentido, que a
resposta para esta pergunta que acabou de fazer, não seja relativa
nem subjetiva (ou seja, que há uma verdade sobre a resposta dessapergunta).
E a resposta não pode vir da mera descrição psicológica sobre como chegamos a ter as crenças que possuímos;
tem de vir do próprio raciocínio normativo.
Do mesmo modo, dizer "toda verdade é uma mera
construção humana" é auto-refutante, porque quem diz tal coisa espera que
isso seja verdadeiro (e verdadeiro em termos objetivos, independentemente de
nossas crenças sobre isso!), e não meramente uma construção humana (é o tipo de
frase que, se verdadeira, é falsa). Se, por outro lado, tal afirmação pretender
ser, ela mesma, uma mera construção, sem pretender ser objetivamente
verdadeira, então não precisamos dar ouvidos a ela, e nem oferecer nenhum
argumento para rejeitá-la, já que ela não oferece nenhum argumento para
aceitá-la. Essa segunda saída possui uma complicação adicional para o
subjetivista, pois ele teria de admitir que, se alguém tomasse como
objetivamente verdadeira a tese que ele defende, então que isso estaria
objetivamente errado, o que também é auto-refutante (ele está a dizer "é
objetivamente verdadeiro que nenhuma tese pode ser objetivamente verdadeira,
incluindo esta"), já que tal tese defende a impossibilidade de qualquer
verdade objetiva. Se o
subjetivista, por sua vez, disser que também não está errado quem considerar
sua tese como exprimindo uma verdade objetiva, então cria outra afirmação
objetiva, e assim infinitamente. Tais tentativas subjetivistas apenas mostram
que toda vez que tentamos subjetivar algo, automaticamente nos apoiamos sobre
uma perspectiva objetiva para que a afirmação faça sentido, o que é sempre
auto-refutante se a tentativa for de subjetivação total.
Contudo,
uma coisa é a tentativa de subjetivação total. Outra coisa é dizer que não
há verdade objetiva emdeterminada área do pensamento. Não necessariamente
isso será auto-refutante (o que não quer dizer que está necessariamente
correto). Quando dizemos que o gosto pela cor predileta não é
passível de avaliação racional, é porque, ao que parece, não existem formas de
argumentar de modo a demonstrar que é preferível, por exemplo, o vermelho ao
verde. Por outro lado, se é afirmado que a ética é passível de avaliação
racional, quer-se dizer que existem formas de argumentar, por exemplo, que uma
determinada decisão moral é errada (ou um dever, ou opcional) em termos
objetivos; não apenas para mim ou para minha comunidade, mas que deveria ser
considerada errada por qualquer um que pudesse pensar com clareza sobre o tema,
ainda que eu, minha sociedade, ou todo mundo, pensassem o contrário. A defesa
da objetividade da ética não é a busca de um padrão moral que todos de
fato acreditam ser correto (posiçãodescritiva), mas que todos deveriam acreditar
(posição normativa). É por esse motivo que é possível todos acreditarem em
uma determinada conclusão moral e estarem todos, errados. A verdade em um
domínio, se existir, não pode ser estatística e nem depender de convenção, do
contrário jamais poderíamos estar todos enganados a respeito de algo. Assim, a
objetividade da ética não é provada por se mostrar que existem alguns padrões
que todas as sociedades aceitam (como, por exemplo, alguma proibição
sobre matar), pois a busca é sobre que padrões deveria-se aceitar. Nem
o fato de haver discordância entre as sociedades e os indivíduos prova que a
objetividade da ética é falsa, e que então todos os juízos são igualmente
arbitrários, pois também se trata de uma mera descrição sobre crenças
divergentes (o que não prova que são todas igualmente plausíveis). Onde devemos
fundamentar essa objetividade então?
Suponha
duas posições normativas completamente opostas: uma que afirma que temos de
levar as preferências dos outros em consideração igual à que damos as nossas preferências
(posição imparcial); e outra que afirma que só temos de levar as nossas
próprias preferências em conta (egoísmo). Argumentarei que: (1) devemos aceitar
a exigência de tratar casos relevantemente similares de maneira similar e
que; (2) tal aceitação requer que adotemos uma perspectiva imparcial
(impessoal) e rejeitemos o egoísmo ou qualquer outra visão normativa que
implique arbitrariedade.
A
generalidade das razões pode ser traduzida na exigência de tratar casos
relevantemente similares de maneira similar. Tal exigência é composta, na
verdade, por duas: coerência e relevância. A coerência aqui
é entendida como estar-se comprometido a, uma vez tomada uma decisão em um caso
com base em uma razão, tomar a mesma decisão diante de outros casos que se
enquadram no escopo da razão oferecida no primeiro caso. Supondo que alguém
afirme que a razão pela qual é correto matar animais não-humanos é que estes
não conseguem entender as idéias de direitos e deveres. Esse alguém está
logicamente implicado a dizer que, então, é correto matar humanos que não
entendem o que são direitos e deveres (os bebês, as crianças pequenas, e uma
parte dos adultos também). Assim, um primeiro passo para detectar erros morais
é verificar se uma posição é coerente ou não. Não significa, contudo, que uma
vez tendo coerência, a decisão está automaticamente justificada. É possível
errar coerentemente, pois é possível que tenhamos escolhido um critério que não
seja relevante e aplicá-lo de maneira coerente. Supondo que a pessoa
do exemplo anterior mantenha que é correto matar todos aqueles que não sabem o
que significam direitos e deveres (incluindo as crianças pequenas, etc.). Os
dois casos são tratados de maneira coerente com o critério escolhido, mas isso
não mostra que o critério escolhido está correto. Nós podemos ainda perguntar:
"no que a vítima saber o significado de direitos e deveres tem a ver com o
erro em matá-la?". Poderíamos responder, por exemplo, que o motivo mais
óbvio que torna o ato de assassinar um mal é que isso impede a vítima de
desfrutar experiências. Quando alguém jovem morre, faz sentido lamentar
lembrando o tanto que tal pessoa tinha a desfrutar ainda, e não, que ela sabia
o que eram direitos e deveres. O que acabei de fazer foi sugerir que a perda
do desfrute é um critério relevante para se descobrir quais seres é
um erro matar, enquanto que saber o que são direitos e deveres não é (talvez
seja apenas para saber quais seres devem ser responsabilizados caso
matem). Mas, se for verdade que o critério do desfrute é relevante e explica o
erro em matar crianças humanas (e, penso que é), então estamos logicamente
implicados a aceitar que, então, é errado matar outros animais não-humanos
sencientes (a saber, seres capazes de ter experiências), já que também são
capazes de desfrute. O que fiz foi apelar ao critério da relevância,
argumentando que a idéia de que só é errado matar os seres que sabem o que são
direitos e deveres reside numa confusão entre o critério relevante para se
descobrir quais seres temos dever de considerar com o critério
relevante para se descobrir quais seres têm o dever de considerá-los.
É possível
que alguém defenda que o critério que elegi para explicar o erro em assassinar
(perda do desfrute) é insuficiente, pois não leva em conta os casos onde o indivíduo
possui uma preferência por continuar vivo apesar de não ter quase nenhum
desfrute pela frente. Essa é uma crítica plausível. Mas, veja o que ela
implica: não mostra que a perda do desfrute é um critério irrelevante; mostra
apenas, se fizer sentido, que a perda do desfrute é um critério suficiente,
mas não necessário, para existir erro em assassinar. É possível que
discordemos tanto sobre se dois casos são ou não relevantemente similares,
quanto sobre se o critério escolhido para julgar os casos é relevante ou não
(como também se um critério relevante é necessário, suficiente ou ambos). Isso
tudo é possível, e é aí que continua o raciocínio ético. Poderíamos continuar,
por exemplo, reconhecendo que talvez o erro em assassinar se configure a partir
de várias razões suficientes, e não apenas de uma, sendo a perda do desfrute
uma razão possível e a preferência por continuar vivo outra. Diante de novos
contra-exemplos poderíamos rejeitar ou aprimorar nossa definição do erro em
matar e assim prosseguiria o raciocínio ético. Agora, estamos já no nível de
apelo à razão, e isso não tem mais nada de relativo ou subjetivo.
O que não é
inteligível é rejeitar as exigências de coerência e relevância. Se alguém
afirmar, por exemplo, que minha análise anterior estava errada, e que há uma
diferença moralmente significativa entre animais não-humanos e crianças
humanas, e pretender, com isso, demonstrar que o critério mesmo da
coerência não é plausível, comete uma confusão. O máximo que alguém pode
conseguir com isso é mostrar que minha análise estava errada; que fui incoerente (que
os casos que pensei que eram relevantemente similares na verdade não são). Para
se conseguir fazer isso, é preciso assumir que casos relevantemente similares
devem ser tratados de maneira similar (assumir a validade da coerência e
relevância). Não é inteligível dizer "esses casos são similares em todas
as características que são relevantes para saber como devemos tratá-los, mas,
apesar disso, não devemos tratá-los de maneira similar". Da mesma maneira,
se alguém afirmar que o critério do desfrute futuro é um mau critério, e
pretender com isso afirmar que a exigência mesma de relevância não
tem importância, comete o mesmo erro. O máximo que poderia ser mostrado com tal
crítica é que é possível que eu tenha escolhido um critério não muito
relevante, não que a relevância não importa. Para isso, tem-se de assumir a
exigência de relevância. É auto-refutante dizer "a relevância não é
relevante".
Assim,
relevância e coerência derivam diretamente da razão (haja vista estarem
presentes implicitamente até mesmo nos argumentos que pretendem rejeitá-la). São
critérios formais (no sentido de não explicitarem diretamente o que
conta como razão relevante e como caso similar) que se fazem presentes em
qualquer raciocínio ético (e em outros usos da razão também), seja lá qual conteúdo estiver
a preenchê-los. Assim, não importa a visão normativa que alguém defensa:
precisa-se assumir essa exigência formal para que sua posição seja minimamente
plausível.
3 - Por que
o teste formal da ética implica que temos de chegar a princípios abstratos
válidos para todos.
A exigência
de que uma razão deve valer para todo e qualquer agente também deriva da
exigência de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Quando
se reivindica que, se tenho uma razão para agir num caso, qualquer outro agente
racional deveria reconhecer o mesmo motivo como gerando uma razão para agir,
está-se apoiado na idéia de que o caso de um agente e o caso dos outros são
relevantemente similares. Se alguém afirma, pelo contrário, que no caso de um
determinado agente, a razão não se aplica, também tem de se apoiar na mesma
regra, ou seja, têm de apresentar o que há nesse caso que justifica o
tratamento diferente. Essa diferença que justifica o tratamento diferente
também tem de ser geral, ou seja, tem de pretender possuir validade para todo
e qualquer agente que se enquadre na definição, não apenas este do caso
particular, além de pretender ter validade universal no sentido de ser uma
razão válida (relevante) para qualquer ser que possa pensá-la com clareza.
Suponhamos
que afirmo, diante de um acidente envolvendo vários feridos, que devemos dar
prioridade aos que estão na pior situação. Quero com isso dizer que tal coisa
deveria ser um dever não apenas para minha sociedade ou para mim, mas para
qualquer ser dotado de razão - ou seja, capaz de reconhecer tal reivindicação
como relevante por conseguir pensar com clareza sobre ela. Supondo que alguém
aponte uma exceção, e afirme que um dos acidentados que não está na
pior situação deveria, contudo, receber prioridade no atendimento, pois se trata
de um médico e têm mais chances de salvar os outros, (afirma-se que tal caso é
relevantemente diferente). Tal razão é geral, em dois sentidos. O primeiro é
que não se aplica somente a esse caso, mas a qualquer indivíduo que tenha mais
chances de salvar os outros dando prioridade ao alívio dos seus próprios
ferimentos. O segundo sentido é que pretende validade universal: que a regra
"dar prioridade àquele que tem mais condições de salvar os outros"
seja reconhecida como uma razão relevante para qualquer ser dotado de razão que
possa pensar sobre a questão, independentemente de cultura ou predisposição
psicológica. Ou seja, reivindica que não faz diferença se é o próprio médico
que tem de tomar a decisão ou se é qualquer outra pessoa. Razão implica generalidade,
e vale para outros casos relevantemente similares (seja na ponta de quem
decide, seja na ponta de quem recebe a decisão), a menos que possamos apontar
uma diferença relevante, que também têm de se apoiar em pressupostos
relevantemente gerais, e assim por diante. Um argumento, por ser fruto da
razão, busca sempre validade universal (que deveria fazer sentido, servir como
justificativa, para qualquer um que pudesse entendê-lo). Como vimos, tal
pretensão aparece até mesmo nos argumentos que visam rejeitar a idéia de
validade universal, como por exemplo na defesa de que "toda verdade é uma
mera construção" o que é auto-refutante.
Um bom
teste para descobrirmos se uma decisão é ou não justificável é perguntar se a
manteríamos independentemente da posição que os indivíduos envolvidos na
situação ocupassem na relação entre quem decide e quem é atingido pela decisão;
ou se a mantemos apenas porque sabemos que nós (ou aqueles que visamos
favorecer tendenciosamente com a decisão) não seremos atingidos por ela. Se for
esse último caso, somos culpados de violar a exigência de tratar casos
relevantemente similares e a decisão não é justificável.
Diante dos
argumentos analisados acima, temos boas razões para pensar que o egoísmo é
indefensável, como também toda uma família de visões normativas que dele
deriva: especismo, racismo, machismo e homofobia, por exemplo. Todos esses
preconceitos tratam interesses relevantemente similares de maneira diferente,
elegendo como diferença que pretende justificar o tratamento diferente algumas
características (a espécie, a cor da pele, o gênero, opção sexual, se sou eu
que estou decidindo ou não, etc.) que são totalmente irrelevantes para o que
está em jogo: a existência de determinadas preferências, necessidades,
interesses. Podemos perceber que também é falsa a idéia de que, em se tratando
de valores básicos, todos são igualmente arbitrários. Isso porque alguns valores
derivam diretamente da imparcialidade, ou seja, da idéia de que, naquilo que é
relevante para o que se está julgando, todos aqueles que apresentam a
característica relevante estão em pé de igualdade no que diz respeito a serem
considerados moralmente. Enquanto isso, outros valores derivam exatamente do
oposto: arbitrariedade, sem se importar com o que é relevante.
4 -
Avaliando conflitos de preferências
Da
discussão anterior, podemos observar que a razão fundamental para atender
minhas preferências se dá por serem preferências (um dano tem lugar se elas não
são atendidas), e não por serem minhas. Note que isso dá, ao mesmo tempo,
uma razão tão forte quanto para atender as preferências dos outros. O
raciocínio ético não começa quando levamos em conta apenas um ou
alguns dos indivíduos que serão atingidos por nossas decisões, e não todos.
Contudo, as
preferências podem conflitar. Nesse ponto, alguns podem pensar que é aí que o
raciocínio ético termina, pois as preferências conflitaram e supõem que não há
como avaliá-las. Não há como tomar uma decisão e, dessa decisão, não se danar ninguém (seja
por ação, seja por omissão). Não há também como satisfazer todas as
preferências conflitantes. Contudo, pelo contrário, é aí que o raciocínio ético começa.
Seja na
moralidade do dia-a-dia, seja em várias teorias filosóficas normativas[6],
existem alguns critérios geralmente reconhecidos como válidos (e, segundo
penso, provavelmente a leitora/leitor também os reconhecerá se pensar
seriamente sobre eles) que visam guiar a decisão quando preferências conflitam.
Exemplos poderiam ser: (1) Interesses básicos (interesses que precisam ser
garantidos antes de se pensar em qualquer outro interesse - por exemplo, não
sofrer, não morrer) têm prioridade sobre interesses não-básicos (comer uma
comida específica, por exemplo). Saber se a decisão aumentará ou diminuirá: (2)
A situação geral daquele(s) que se encontra(m) na pior situação; (3) a
quantidade de indivíduos numa situação ruim; (4) a igualdade (entendida aqui
como igualdade de bem-estar) entre os indivíduos atingidos. (5) A decisão é a
que produz mais benefícios e menos malefícios agregados do que todas as outras
possíveis alternativas? (6) Alguém está sendo utilizado como um mero recurso
para outro (ou seja, está se desconsiderando completamente o seu valor enquanto
indivíduo)? (7) Distinguir preferências que estão de acordo com o teste formal
da ética e preferências que são elas mesmas frutos de uma visão que viola a
mesma exigência.
Esses
critérios podem também conflitar entre si ou se mostrarem inadequados ou
incompletos, o que não é motivo para pensar que o raciocínio ético é impossível
e que é ‘tudo muito relativo', mas sim, que tal assunto requer mais análise e
mais raciocínio ético. Poderia ser defendido, por exemplo, que as idéias de
responsabilidade e merecimento também devem entrar na equação. O que pretendi
sugerir, ao citar esses critérios, é que é falso que não temos idéia alguma de
como avaliar preferências quando conflitam.
É
importante enfatizar também que a imparcialidade requer consideração igual,
não necessariamentetratamento igual[7]. Se alguém pretende colocar a
imparcialidade sob dúvida com o exemplo de que, então, teríamos que dar uma
parte igual, e não, maior, àquele que tem menos, numa distribuição, não
compreende o que chamei de imparcialidade. Embora, ao dar mais a quem tem
menos, tenhamos tratamento diferente, o resultado final é mais
igualitário - ou seja, temos vários indivíduos com níveis mais próximos de
bem-estar. E só podemos reivindicar que aquele que tem menos receba mais
apelando também à regra de tratar casos relevantemente similares de maneira
similar. No caso da prioridade a quem tem menos, o que estamos a dizer é que
temos uma razão para pensar que tal caso deve ser tratado de maneira diferente
do caso em que todos estão já em igualdade de distribuição. Ou seja, que tal
caso é relevantemente diferente a ponto de exigir tratamento diferente. Por sua
vez, temos uma nova regra, que é "dar prioridade ao que tem menos". Essa
regra, por sua vez, é geral. Temos de admitir que é válida sempre que houver
alguém numa situação pior do que a dos outros, não importando quem é
esse alguém, e que vale não apenas quando sou eu que decido, mas qualquer
indivíduo dotado de compreensão. O egoísta, pelo contrário, defenderia a
prioridade somente quando ele próprio ou alguém de sua preferência estivesse na
pior situação. O mesmo faria o especista, que defenderia prioridade apenas para
os da sua espécie, como o racista defende para os da sua raça. Uma evidência de
que o raciocínio ético começou é quando deixamos de nos basear em critérios
irrelevantes. Isso, muitas vezes, irá requerer que defendamos que alguém na
situação pior, que não nós mesmos ou aqueles que preferimos, deve receber
prioridade.
5 - Por que
a imparcialidade exige que seja abolido o uso de animais
Vimos
anteriormente que a exigência de tratar casos relevantemente similares de
maneira similar implica noprincípio da igual consideração[8]. Tal princípio diz
que, diante de um interesse X, a moralidade de se fomentar ou não tal interesse
deve-se unicamente às características do interesse em questão, não de quem o
possui. A razão para se fomentar o interesse em evitar o sofrimento se dá pelo
sofrimento ser uma experiência ruim, e não por ser o sofrimento de determinado
indivíduo. Assim, se existem boas razões para se fomentar X quando quem o
possui é A, temos iguais razões para fomentá-lo quando quem o possui é B, C ou
D. Se reconhecemos que a razão que funda a obrigação de se fomentar o interesse
em viver, de humanos, é a possibilidade de desfrutar da vida, então,
racionalmente, estamos comprometidos a reconhecer que isso é igualmente válido
quando tal interesse aparecer em qualquer outro ser capaz de desfrutar da vida
(a saber, os seres sencientes, seres capazes de sensações). Quando tratamos
interesses relevantemente similares com consideração diferente, somos culpados
de violar o princípio da igualdade.
Voltemos
agora, ao caso dos conflitos de interesses e a regra de que interesses básicos
devem ter prioridade. O fundamento de tal regra é que, se a razão pela qual
devemos fomentar interesses é a de que um dano tem lugar caso o mesmo não seja
fomentado, e se é verdade que, quanto mais básico o interesse, maior o dano se
este não for fomentado, então, quanto mais básico o interesse, maior deve ser
sua prioridade. Isso explica porque práticas como, por exemplo, o assassinato
por diversão e o estupro estão entre as mais hediondas: o interesse
desrespeitado (o da vítima, na integridade física e no desfrute da vida) é
muito mais básico (e o dano que sofre por não ter o interesse satisfeito, muito
maior) do que o interesse do violador. Se tratar interesses similares com
consideração diferente já é uma violação da imparcialidade, dar prioridade ao
interesse banal, sacrificando o interesse vital, é uma violação extrema da
mesma.
Muitos
humanos já aplicam coerentemente tal regra em alguns casos em que as vítimas
são animais não-humanos. Práticas como a farra-do-boi, rodeios e touradas, por
exemplo, são mais facilmente repudiadas porque nelas está explícita a violação
de um interesse básico para satisfazer um não-básico. Reconhecemos que, quanto
mais próximo da diversão está o motivo pelo qual alguém inflige dano em outro
indivíduo, mais injustificável é a prática. Tais práticas são um exemplo
paradigmático de injustiça.
Uma
implicação que não é muito percebida da mesma regra é: se usar animais para
entretenimento é errado porque envolve causar um dano grave a alguém para
fomentar a diversão, então temos de abolir, por exemplo, o uso de animais para
alimentação (seus corpos, seus ovos, leite, etc.), porque também infligem danos
graves (extremos de sofrimento e trilhões de mortes) para fomentar a diversão. Os
defensores do consumo de animais alegam que, com relação à comida, é diferente,
pois, comer não é um interesse banal. A falha nessa resposta é que, embora seja
verdade que comer alguma coisa seja um interesse básico, comeresta comida específica é
um interesse banal. Quando existe alternativa alimentar que cause menor dano
(como a comida vegana), escolher comer outra comida é saciar um interesse
banal. Assim, comer comida de origem animal é tão injusto quanto botar fogo em
alguém por pura diversão ou estuprar; e mais injusto ainda por ser praticado
todos os dias, o que causa um número maior de vítimas. Ambas as práticas visam
saciar um interesse banal a custa de danos enormes, fruto da violação de um
interesse básico. Por isso, o uso de animais para a alimentação também é um
exemplo paradigmático do máximo possível em discriminação arbitrária que alguém
poderia cometer, e, por isso, moralmente hediondo. Pior ainda por estar baseado
numa diferença moralmente irrelevante no que diz respeito à existência do
interesse básico: a espécie da vítima.
A tortura e
morte de bilhões de animais para satisfazer a diversão humana não se limitam ao
entretenimento e ao uso alimentar. Quase todos os outros usos de animais (nos
testes de produtos e vestuário, por exemplo) só podem ser descritos como
atendendo a interesses triviais dos humanos. Assim, mesmo que fôssemos rejeitar
o especismo somente nos casos extremos (interesses banais x vitais), ainda
assim teríamos o dever de nos tornarmos veganos e reivindicarmos a abolição do
uso de animais em todas essas áreas[9].
O único uso
que faz algum sentido alegar que visa atender a um interesse não-banal é o uso
em pesquisa médica. É altamente discutível se a maior parte desse uso visa
realmente a entender tais interesses não-banais e se são uma forma eficaz de se
buscar tais interesses[10]. Mas, como o objetivo aqui é discutir a questão
moral, vou supor que todo esse uso visa atender a interesses humanos não-banais
e que realmente tem chances de fazer diferença na cura de doenças. Tal uso é
justificável? Lembremos que a exigência de tratar casos relevantemente
similares de maneira similar implica na imparcialidade, que pode ser traduzida
no princípio da igual consideração: para uma decisão ser justificável, temos de
manter a mesma decisão, independentemente da posição que os
indivíduos atingidos por ela ocupam na situação (temos de acessar a relevância do
interesse em questão, não quem o possui). Os que defendem o uso
de animais na pesquisa não aprovariam serem usados à força como cobaias para
salvar a vida de animais não-humanos. Ou seja, sua posição não é imparcial:
defende-se o uso apenas porque as vítimas são animais não-humanos. Sua posição
é especista. Fossem os papéis invertidos, os humanos considerariam uma
calamidade tal uso. Isso mostra que sua prática é eticamente indefensável, e
que os humanos só pensam que não é porque estão na ponta tirânica da situação. Haveria
alguma maneira de se defender que os seres humanos possui um status moral
maior, que os intitula a assassinar indivíduos de outras espécies quando o que
está em jogo é a realização de interesses vitais, mesmo sabendo que os
interesses nos indivíduos das diferentes espécies em questão são relevantemente
similares? Investigaremos esse ponto no item 7.
6 - A
Questão da Prioridade: "Por que não vão cuidar de criancinhas?"
Supondo a
seguinte objeção: "Reconheço o especismo é injustificável, mas, existem
tantos outros problemas importantes, como as milhares de crianças morrendo de
fome; não deveríamos resolver esses problemas primeiro?".
O primeiro
problema com essa objeção é que ninguém ajuda crianças humanas comendo comida
de origem animal. Assim, parar de explorar animais não impede que alguém ajude
crianças humanas. Mesmo que fosse verdade que os problemas humanos são mais
importantes, ainda haveria o dever de nos tornarmos veganos. O segundo, é que,
tal objeção é ela mesma, especista. Assume que os problemas humanos são mais
importantes, simplesmente por serem problemas de humanos. Se tal posição
pretende ser justificável, precisa oferecer uma razão (geral, imparcial) para
se pensar que o tipo de problema que aflige os humanos é mais
importante (ou seja, apontar uma razão que mostre que, caso não fossem os
humanos as vítimas, e sim, os animais não humanos, a prioridade teria de ser
invertida). É precisamente isso que penso ser impossível de se fazer. Aliás,
penso que se dá o contrário: qualquer consideração imparcial nos mostrará que
os problemas que passam os animais não-humanos deveriam receber prioridade, não
porque são os animais não-humanos suas vítimas, mas porque a situação deles é
pior. Tal posição é imparcial porque, caso fossemos humanos, e não os
animais não humanos, na mesma situação, então os humanos deveriam receber
prioridade.
Penso que,
se raciocinarmos a partir de um ponto de vista imparcial, chegaremos à
conclusão de que a prioridade deve estar onde: (1) Existirem indivíduos que se
encontrem, em comparação a todos os outros, na pior situação; (2) Existir o
maior número de indivíduos na pior situação; (3) Houver o maior dano agregado,
somando-se o dano causado a todos os indivíduos afetados naquele caso; (4)
Houver maior desigualdade, comparando-se o nível de bem-estar dos que estão na
pior situação com o nível de bem-estar dos que estão na melhor.
A situação
na qual se encontram hoje os animais não-humanos preenche todos esses
requisitos. Apenas a título de ilustração, se tomássemos apenas o critério do
número de mortes, e comparássemos a quantidade de humanos mortos (por toda e
qualquer causa) com a quantidade de animais não-humanos assassinados (somente
através do uso feito por humanos), teríamos o seguinte resultado, convertendo
os resultados em um gráfico que simbolizasse 24 horas: as mortes humanas seriam
00:00:00"12 (doze milésimos de segundo), enquanto que os assassinatos de
animais não-humanos seriam 23:59:59"88[11]. Perceba que a consideração
acima não nega que exista algum humano numa situação pior do que algum animal
não humano (num caso como esse, a prioridade seria o atendimento ao humano). Ao
invés, diz que, os quatro requisitos, tomados em conjunto, mostram que a
situação dos animais não-humanos tomados em conjunto, é pior, o que requer
prioridade. Faz sentido, nesse caso, apelar à situação em geral, porque quando
escolhemos uma causa para lutar, não estamos trabalhando com casos individuais
apenas. No caso dos animais não-humanos, estão lutando contra o especismo em
geral.
E, se
alguém respondesse que a prioridade deveria estar em resolver os problemas
humanos (mesmo reconhecendo que não preenchem os quatro requisitos de
prioridade listados acima) porque a vida humana é mais valiosa? O item a seguir
lida com essa questão:
7 - Por que
matar animais não-humanos é tão errado quanto matar animais humanos: analisando
algumas objeções à igualdade animal.
Muitas
pessoas se opõem às granjas industriais, mas não vêem problema caso existir um
abate indolor depois de uma vida prazerosa. Assim, vemos várias campanhas que
visam minimizar o sofrimento, mas não questionam o uso em si nem o matar em si
(as chamadas campanhas bem-estaristas ou reformistas). Isso
acontece porque os reformistas reconhecem que os animais não-humanos têm
interesse em não sofrer, mas não reconhecem o seu interesse em viver. Geralmente ,
a pergunta a seguir nunca é colocada por um reformista: "o que torna
errado matar (mesmo sem sofrimento) humanos e, ao mesmo tempo, torna correto
matar outros animais?". Como pretendo mostrar, nenhum dos argumentos
endereçados a seguir[12]consegue mostrar que só há erro em matar humanos, nem
que o erro em matar humanos é maior.
A - "É
errado matar humanos porque eles são humanos"
Um problema
com esse argumento é que a premissa da qual parte é arbitrária. Se a espécie
biológica é eleita como critério para se determinar quais seres é um erro
matar, é preciso explicar: (1) Por que a espécie biológica da vítima é
relevante para se determinar o erro em matar e; (2) Por que é a espécie Homo
sapiens, e não qualquer outra, a única espécie cujos membros é um erro matar.
Tal
argumento é circular: assume que os humanos valem mais quando é isso que
deveria provar. Se alguém dissesse: "os únicos seres os quais é um erro
matar são amebas, justamente porque amebas são amebas", precisaríamos de
uma razão a mais para acreditar nisso. Se for errado matar amebas, deve ser por
alguma outra razão adicional que não o mero fato delas serem o que são. Qualquer
coisa é ela mesma. Isso é tão verdadeiro quanto irrelevante para a moralidade
de matar, sejam amebas, sejam seres humanos.
É
necessário que se explique por que a espécie biológica deveria ser relevante
com relação ao erro em
matar. Por que a espécie biológica e não a raça, gênero,
orientação sexual, número de vogais no nome, data de aniversário, ou formato da
sombrancelha? Na falta de razões que expliquem por que tais critérios deveriam
ser relevantes, temos boas razões para pensar que são totalmente arbitrários, e
nada têm a ver com a moralidade sobre o ato de assassinar, pois não influenciam
na razão que torna a decisão sobre assassinar uma questão ética: o fato de a
vítima sofrer uma perda.
Existem
motivos muito mais óbvios para se apontar o erro em matar alguém do que apontar
o mero pertencimento a determinada espécie biológica. Quando algum humano muito
jovem morre, normalmente dizemos "Que pena! Ele tinha tanto ainda para
desfrutar!". Tal lamento não é irracional, como seria se disséssemos,
diante da mesma constatação: "Que pena! Ele possuía a letra H no
nome!". O tempo que alguém tem ainda para desfrutar pela frente é uma
razão plausível para explicar o erro em matar, diferentemente do pertencimento
a uma espécie, raça, gênero, etnia. A dificuldade aqui, para os especistas, é
que essa mesma razão dá um motivo contra matar animais não humanos, pois ter
possibilidade de desfrute no futuro não é exclusivo de nossa espécie.
Para
percebermos a irracionalidade e desonestidade presentes no especismo, considere
o seguinte exemplo fictício: um amigo de infância nos revela que é, na verdade,
um extra-terrestre (de outra espécie biológica). O especista responderá:
"É correto matá-lo! Ele é de outra espécie!".
B - "Humanos
são mais inteligentes"
Já que o
argumento anterior é circular, a única maneira de se tentar defender tal
posição é buscar alguma característica possuída exclusivamente por humanos, uma
que explique o erro em
matar. Uma das tentativas mais comuns desse tipo consiste em
afirmar que humanos são mais inteligentes. Costuma-se apontar que humanos são
capazes de muitas tarefas. As mais mencionadas são: agir eticamente, firmar
contratos, ter senso de justiça, possuir linguagem, fazer matemática avançada,
compor sinfonias, construir naves espaciais, etc. Chamarei essa característica
de "posse da razão plena":
Um problema
com esse argumento é que simplesmente não é verdade que todos os humanos têm a
posse da razão plena. Por exemplo, bebês, crianças muito pequenas, comatosos,
idosos senis e portadores de determinadas doenças cerebrais não a possuem. Isso
se aplica a qualquer um de nós que a temos agora, pois poderemos perdê-la, por
acidente ou doença. Se formos contar o nível de raciocínio, até mesmo
pelos padrões humanos, qualquer cão adulto normal é muito mais racional e
autônomo do que os humanos citados anteriormente[13]. Se o erro em matar se dá
pelo nível de raciocínio da vítima, então não seria errado matar aqueles
humanos. Os proponentes de tal critério teriam de admitir que seria muito pior
matar qualquer cão, galinha, porco ou peixe adulto normal. Ou tais proponentes
mantém a exigência do nível de raciocínio onde está (e excluem tanto animais
não-humanos quanto os humanos mencionados acima) ou abaixam a exigência para
incluir todos os humanos (o que, automaticamente, inclui todos os outros
animais sencientes).
Alguém
poderia objetar que a resposta acima se esquece de que bebês e crianças muito
pequenas um diapoderão desenvolver a posse plena da razão, e que idosos
senis um dia já tiveram a mesma. São, portanto, agentes morais em
potencial, ainda que não reais.
Um problema
com esse argumento é que alguns seres humanos sequer são portadores da razão
plena em potencial porque somente um milagre os poderia fazer terem
tal capacidade. Por exemplo, aqueles com doenças mentais degenerativas
permanentes. Mas, supondo, para efeito de argumentação, que fôssemos considerar
a possibilidade de um milagre, mutação genética ou avanço da ciência, por
exemplo. Temos que ser imparciais, portanto, teríamos de considerar que animais
não humanos também poderiam, por um milagre, mutação genética ou avanço da
ciência, adquirir a posse da razão plena. Quanto ao critério da potencialidade,
poderíamos questionar ainda qual sua relevância. Afinal de contas, não pensamos
que, por exemplo, um cidadão que é um médico em potencial deva ter os mesmos
direitos do médico real (aliás, é mais plausível pensar o contrário).
Alguém
poderia ainda alegar que erro com nossa análise até aqui é que consideramos os
indivíduos enquanto tais, e não enquanto membros de um grupo. Assim, nessa
perspectiva, o que importa é que os membros normais de um determinado grupo
conseguem fazer (humanos adultos têm posse plena da razão), não importa se
alguns membros não conseguem (os humanos incapazes de razão); deveriam ser
tratados como os membros normais. Tal perspectiva também defende que, mesmo que
um animal não-humano apresentasse a posse plena da razão, teríamos direito de
assassiná-lo, haja vista os membros normais de sua espécie não apresentarem.
Um primeiro
problema com esse argumento é que veríamos facilmente que deveria ser
rejeitado, por ser arbitrário ao extremo, se aplicado em outras questões. Argumento
similar foi utilizado para impedir que as mulheres tivessem acesso às
universidades, no século XVIII, inclusive para tentar impedir aquelas mulheres
que eram aprovadas, com a alegação que a maioria das outras não obtiveram
sucesso[14]. Outro exemplo: com o mesmo critério, teríamos dizer que os locais
públicos não deveriam estar adaptados às necessidades dos cadeirantes, já que
eles pertencem a uma espécie tal que a maioria dos membros consegue andar com
as próprias pernas. A grande lição a ser aprendida aqui é justamente sobre
tratar indivíduos enquanto indivíduos, e não enquanto membros de grupo.
Outro
problema é que o grupo sobre o qual está fundado o argumento é escolhido
arbitrariamente. Por que dividir os grupos com base na espécie biológica, e não
com base na raça, gênero, banda favorita, tamanho do pé, formato da orelha,
etc? Todos esses critérios soam irrelevantes, pois não dizem respeito ao
assunto que está sendo julgado (o erro em matar), já que não dizem nada sobre o
malefício que alguém sofre ao ser morto. Os únicos grupos relevantes de serem
divididos aqui, seriam: "os que são danados ao serem mortos" e
"os que não são". Note que, se os grupos fossem divididos dessa
maneira, não haveria arbitrariedade, pois seria tratar exatamente os indivíduos
enquanto indivíduos (pois o critério escolhido para dividir os grupos seria
relevante para o assunto em questão).
Para que
seja percebida a desonestidade envolvida no critério do grupo, considere o
exemplo a seguir: os proponentes de tal argumento afirmam que é correto assassinar
uma galinha não porque ela é uma galinha, mas porque ela não pertence a um
grupo cujos membros normais apresentam a posse plena da razão. Supondo que, de
repente, uma galinha sofra uma mutação genética e obtenha uma racionalidade
igual à de um humano adulto. Os proponentes do argumento do grupo, que sugerem
o critério da posse da razão, responderão: "sim, ela apresenta o critério,
mas mesmo assim vamos assassiná-la, porque é só uma galinha mesmo, e as outras
galinhas não têm posse da razão".
Aqui vale
mais uma vez lembrar da acusação de especismo: não excluímos da consideração
moral membros de nossa espécie, ainda que eles não apresentem o critério que
propomos (o nível de raciocínio) para excluir animais não humanos; e excluímos
animais não-humanos, ainda que muitos deles apresentem um nível de raciocínio
muito maior do que os humanos citados acima. Isso indica que o critério é tão
desonesto que não estamos dispostos a admiti-lo.
Assim, nos
encontramos diante da seguinte situação: (a) ou mantemos que o critério da
posse da razão plena como fundando o erro em matar é um critério adequado; o
que implica que temos de dizer que é correto matar não somente animais não
humanos, mas também os humanos que não possuem a posse plena da razão ou; (b)
abandonamos o critério e buscamos o erro em matar em outro lugar. Que decisão
devemos tomar?
Para
responder tal questão, é importante notar que mesmo que as premissas que
colocamos em dúvida fossem verdadeiras (se todos os humanos fossem portadores
da razão plena, reais e potenciais e se devêssemos tratar indivíduos enquanto
membros de grupo), ainda assim haveria um grave problema com os argumentos
abordados:
Ser
portador da razão plena (real ou em potencial) não é a coisa mais óbvia a levar
em conta ao se tentar explicar de modo plausível o erro em matar alguém, mas
sim, entre outras coisas, o desfrute que esse alguém poderia ter da vida
no futuro. Normalmente, pensamos que é errado (e muito errado) assassinar uma
criança, mesmo que ela não tenha desenvolvido a posse da razão plena nem tenha
expectativa alguma de desenvolver. O motivo que torna tal crença plausível é
que, se a criança é morta, impedimos que ela tenha desfrute no futuro (ela
sofre uma perda, mesmo que não tenha consciência da perda). E isso se
aplica tão bem a animais humanos sencientes quanto a não humanos sencientes.
Outro
problema do critério da posse da razão é confundir algo que é possível de ser
"uma razão contra matar" com "a única razão
contra matar". Normalmente, é ruim eliminar do mundo um ser que tem a
posse plena da razão, porque envolve eliminar, entre outras coisas, alguém
capaz de realizar o que a ética prescreve, e, portanto, realizar o bem. Contudo,
não é verdade que a única meta da ética é proteger a vida dos agentes
morais (aqueles seres capazes de agir eticamente). Só existem questões
morais porque existem os pacientes da decisão (a saber, aqueles que podem ser
beneficiados ou danados pela mesma, incluindo o próprio agente, quando é
afetado pela sua decisão). O principal erro de todos os argumentos anteriores é
confundir uma característica que é relevante para se determinar quem pode ser
responsabilizado caso não leve o outro em consideração, e aplicá-la para se
determinar quem deve ser levado em consideração; nesse último caso, a capacidade
para a razão plena não é relevante, mas sim, a possibilidade de sofrer um
benefício/malefício[15].
No
dia-a-dia, já reconhecemos que é a capacidade de desfrute a característica
moralmente relevante no que diz respeito a considerar os interesses de alguém:
no caso dos humanos destituídos da posse da razão plena, ao contrário de
matá-los, damos maior atenção ainda aos seus interesses, pois estão numa
situação de maior dependência dos nossos cuidados. Isso não deveria causar
espanto, pois, os agentes morais, seres capazes de virtude, são exatamente
aqueles que devem ajudar os incapazes, e não, aproveitar-se deles para seus
interesses egoístas[16]. Animais não-humanos estão, por não terem a posse da
razão tão desenvolvida, numa situação de vulnerabilidade maior. Portanto, a
conclusão ética válida deveria ser que merecem atenção primordial, assim como
os humanos na mesma situação, por terem menos condições de se defenderem
sozinhos.
Uma objeção
poderia ser a seguinte: mesmo reconhecendo que a perda do desfrute já é
suficiente para haver erro em matar, não é verdade que alguém possuir posse
plena da razão faz com que sua vida possua valor maior? Isso implicaria que a
vida dos agentes morais (independentemente de espécie) possui valor maior do
que a dos pacientes morais (independentemente de espécie).
Mesmo se
fosse verdade que ter a posse plena da razão faz com que o valor da vida desse
alguém seja maior, isso não implica que aqueles cuja vida possui valor maior
têm direito de matar outros para salvar sua própria vida, nem que seus
problemas necessariamente são mais danosos. Além do mais, ter posse plena da
razão não é motivo para se dizer que tal característica aumenta o valor da vida
de quem a possui. A posse plena da razão é fruto da loteria natural, portanto,
não resulta de mérito. Tal capacidade é resultado de pertencer à espécie humana
e chegar à idade adulta sem nenhuma doença ou acidente que afete a constituição
mental. Todas essas condições dependem, largamente, da sorte. Como vimos,
devemos rejeitar a desigualdade (entendida como desigualdade de bem-estar). Isso
porque não existe nenhum bom argumento para se acreditar que um indivíduo é
mais especial do que os outros. A desigualdade é, então, um mal,
independentemente de sua fonte: se é causada por decisões nossas ou se já
existe naturalmente. Assim, dentre as metas da ética (ou seja, aquilo que
devemos fazer) está corrigir as desigualdades naturais, e não,
perpetuá-las. Ter a posse plena da razão já dá vantagens demais ao seu
possuidor, em termos de cuidar de si (o que seria verdadeiro, mesmo se a posse
da razão dependesse de mérito e não fosse resultado da loteria natural). O
dever de dar prioridade maior aos interesses de alguém é diretamente
proporcional à vulnerabilidade desse alguém. Como vimos, dentre as metas da
ética está a diminuição da desigualdade entre indivíduos, e isso inclui
desigualdade de poder, seja artificial ou natural.
C - "se
é errado matar animais, então é errado matar plantas - o que é absurdo -, então
é correto matar ambos"
Essa
objeção pode querer dizer duas coisas: (1) Que o critério de consideração moral
deve ser a senciência e que plantas também são sencientes, ou; (2) Que tal
critério deve ser a vida biológica. Há problemas específicos nos dois tipos de
objeção, e um problema geral que permeia os dois.
O problema
específico da primeira é que não existe a menor evidência científica que
suporte a tese de que plantas são sencientes. O problema específico da
segunda é que não é nada óbvio que o erro em matar se dá por tirar a vida de
alguém. Estar vivo e desfrutar da vida são duas coisas bem
distintas. Quando avaliamos o erro em matar, estar vivo (sem desfrute de nada),
por si só, não é geralmente uma razão alegada contra o assassinato. Estaríamos
errados em normalmente pensar assim?
O filósofo
Oscar Horta[17] oferece o seguinte exemplo, com vistas a defender que é a
senciência, e não, a vida biológica por si, que é relevante quanto ao erro em
matar: supondo que você esteja na posição de escolher entre (1) Morrer agora
ou; (2) Ficar biologicamente vivo por mais vinte anos, na completa
inconsciência (sem nenhuma sensação, nem mesmo sonhos), sem chance
alguma de recuperar a consciência, e depois morrer. A pergunta é: faz diferença para
você, continuar sendo um corpo vivo ou morrer? Parece que toda diferença que
podemos alegar nesse caso apelará a preferências de amigos, parentes, etc (que
são seres sencientes), ou a preferências que você possui agora (enquanto é
senciente) quanto ao futuro do seu corpo. Para você, no futuro, inconsciente,
não faz diferença. Assim, é a capacidade para senciência que é relevante
moralmente no que diz respeito não somente ao erro em matar, mas a qualquer
outra questão moral. Isso porque as duas formas básicas de se prejudicar alguém
são por inflição de sensação ruim (o que explica o erro em fazer sofrer, por
exemplo) e por privação de desfrute (o que explica o erro em matar, por
exemplo).
Vejamos
agora o erro comum nas duas formas do argumento. Supondo, para efeito de
argumentação, que plantas fossem sencientes (assumido na objeção 1), ou que, o
erro em matar se configurasse a partir do erro em tirar a vida biológica
(assumido na objeção 2). Não segue daí que é correto matar animais. Se
seguisse, também seria correto matar humanos, já que também são sencientes
(objeção 1) e também estão biologicamente vivos (objeção 2). O absurdo
envolvido nessas objeções é que se começa apontando uma característica para se
fundar o erro em matar; em seguida aponta-se que a classe de seres
que é um erromatar é maior do que imaginamos e; finalmente, tira-se uma
conclusão afirmando que é correto matar seres que se enquadram em tal
definição.
Para
ilustrar tal absurdo, vejamos um exemplo envolvendo humanos. Supondo que
estivéssemos no século XIX, lutando para abolir a escravidão dos
afro-descendentes. Supondo que, devido ao machismo não questionado em nossa
sociedade, não estivéssemos dando atenção alguma à opressão sobre as mulheres. Alguém,
adversário da abolição da escravatura, aponta essa incoerência: "se negros
querem ser livres, mulheres também querem". Supondo que esse alguém logo
em seguida conclua: "logo, não devemos libertar nem os negros nem as
mulheres". Ora, o absurdo dessa conclusão está em que ela é contrária às
premissas. Primeiramente aponta-se que a classe de seres com um interesse a ser
considerado é maior do que imaginamos, para logo em seguida afirmar que, então,
não devemos considerar nenhum desses interesses. Apontar que a classe de seres
a serem considerados é maior do que imaginamos jamais pode construir um bom
argumento para diminuir mais ainda essa mesma classe.
8 - O passo
seguinte implicado na rejeição do especismo
Diante dos
argumentos apresentados anteriormente, temos boas razões para pensar que não há
como se defender a idéia de que a vida humana possui maior valor do que a vida
de animais não humanos. É necessário lembrar, contudo, que o especismo acontece
não somente onde há assassinato ou uso dos animais como recursos; acontece toda
vez que tomamos uma decisão num caso envolvendo animais não-humanos que jamais
tomaríamos se no lugar deles estivessem humanos com características similares
no que é moralmente relevante para o que está em jogo. Vale lembrar que
as conclusões aqui dizem respeito a considerar cada um dos
indivíduos, e não, as espécies como um todo. Como vimos, a espécie é um
critério moralmente irrelevante. Se um animal pertence a uma espécie rara e
outro a uma espécie abundante, nada disso serve para justificar que a vida do
primeiro vale mais do que a do segundo. É por esse motivo (e por outros), que
reconhecer o dever de dar igual consideração aos animais não humanos nada tem a
ver com o pensamento ecologista, que vê valor nas espécies e não nos
indivíduos.
No que diz
respeito a questões envolvendo humanos, reconhecemos, além do dever de não
usá-los, pelo menos em determinados casos, o dever de prestar ajuda, mesmo
quando o dano inicialmente causado não surge de práticas humanas. Geralmente
reconhecemos que, quando não há grande risco para o agente, temos o dever de
ajudar quem foi atingido por um desastre natural. O reconhecimento de tal dever
não se limita a catástrofes naturais, mas também a casos onde o dano é causado
por doenças, por exemplo. Vejamos no que isso implica em relação aos outros
animais:
A vida
selvagem, em geral, é marcada por intenso número de mortes e sofrimento. Se o
número de animais mortos na pesquisa some frente ao número de animais mortos na
alimentação, o número de animais usados por humanos em geral (somando-se
todas as práticas exploratórias) some frente ao número de animais mortos e
sofrendo intensamente no mundo silvestre, devido a causas naturais[18]. Predação,
morte por inanição, parasitismo, congelamento, entre outros danos, são a norma
na vida selvagem[19]. A vida dos animais silvestres contém em geral, muito mais
sofrimento do que prazer[20]. Isso se deve, em grande parte, à alta taxa de
mortalidade anterior à maturidade sexual. Para cada indivíduo que não morre de
inanição e não é predado, existe um número muito extenso que foi. Segundo
Yew-Kwang Ng, num período de aproximada constância populacional, em média, de
todos os filhotes nascidos de uma mãe em toda a sua vida, apenas uma fêmea
consegue sobreviver até a maturidade sexual[21]. A partir do tamanho da ninhada
de uma espécie, conclui Ng, podemos ter uma idéia do número de indivíduos que
morrem de inanição ou são predados[22]. O tamanho da ninhada não é determinado
por considerações sobre o bem-estar dos indivíduos da espécie, mas pela chance
de sobrevivência dos genes[23]. Já que escapar da morte por inanição ou
predação é algo difícil, algumas espécies conseguem manter-se porque produzem
um número muito alto de filhotes. Mas, como aponta Ng, se os que não sobrevivem
até à maturidade sexual sofrem de bem-estar negativo, como parece ser, então
"esse resultado da seleção natural está longe da maximização do bem-estar
das espécies, mas não tão longe da maximização das misérias[24]".
Ng dá o
seguinte exemplo: supondo que a seleção natural resulte em cada adulto de uma
espécie deixando dez descendentes, sendo que apenas três conseguem sobreviver a
ponto de atingirem a maturidade sexual e criarem a próxima geração. Os outros
sete morrem antes, cada qual com um bem-estar negativo. O número de animais com
bem-estar negativo triplica a cada geração, e triplica também o número de
sofrimento total agregado. Supondo que cada indivíduo com bem-estar positivo
esteja com felicidade +2 e os com bem-estar negativo com sofrimento de -1 (que
é uma estimativa de sofrimento bastante modesta). Então, levando-se em conta os
10 descendentes de um adulto, o seu nível hedônico agregado será de (3x2) +
(-1x7) = -1. "Esse bem-estar negativo agregado explode exponencialmente à
medida que a população aumenta a cada geração, (por exemplo, -10, -30, -90, -270,
-810... até -34, -867, -844, -910 depois de 20 gerações apenas)[25]". O
chamado "equilíbrio natural" não favorece aos indivíduos vivendo em
tais ecossistemas, mas, sim, aos seus genes. A vida na natureza está mais
próxima do inferno do que da visão paradisíaca que a maioria de nós acredita.
E, se for
objetado que isso tudo é natural, e que, portanto, não devemos minimizar tais
danos? É preciso notar que, quando humanos produzem os mesmos estados de coisas
(sofrimento e morte), imediatamente reconhecemos tais produtos como de valor
moral negativo (daí o erro em assassinar e em causar sofrimento). Nessa
objeção, então, está envolvida a idéia de que, para um mesmo estado de coisas,
seu valor moral depende exclusivamente do tipo de processo que o causou. Contudo,
não parece ser essa a razão que oferecemos para explicar o que há de errado em
causar sofrimento e assassinar. Não dizemos que causar tais coisas são erradas
porque "são fruto de ação humana" (se fosse assim, teríamos de dizer
que todas as outras ações humanas o são), mas sim, porque tais coisas causam
danos às vítimas (é assim que determinamos quais ações/omissões humanas são um
mal e quais não são). E tal dano está igualmente presente quando o processo
inicial que as causa é natural (sendo a escolha em dar continuidade à
conseqüência ruim desse processo uma decisão de agentes humanos). Assim, o
valor moral de uma conseqüência deve ser avaliado em torno da própria
conseqüência (sua influência sobre os seres sencientes), e não, de acordo com o
processo inicial que o desencadeou.
Se a vida
na natureza está muito próxima de um inferno, em termos do número de mortes e
sofrimento envolvido; se o fato de um determinado estado de coisas ser natural
não lhe agregar valor moral; se pensamos ser correto socorrer humanos quando
são afetados por danos naturais (independentemente do impacto que tal socorro
terá no equilíbrio natural); então temos, aparentemente, de considerar esses
danos naturais que os animais não-humanos sofrem como tão urgentes de serem
aliviados quanto os danos causados ativamente por nós, pelo menos tão urgentes
quanto se as vítimas fossem humanas (para entender esse ponto, basta se
imaginar por um segundo sendo devorado vivo por parasitas ou morrendo
lentamente de inanição). Afinal de contas, para aquele que sofre o dano, o fato
de este ser produto de uma ação ou omissão de quem decide, é indiferente. Discuto
a questão dos danos com mais profundidade em outros lugares[26]. Menciono-a
aqui para entendermos que: à medida que reconhecemos que o especismo é
injustificável, situações que até então não sabíamos que eram questões éticas
se colocam diante de nós, e exigem um posicionamento imparcial.
Notas
[1] Mestre
em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), colaborador do site Olhar Animal (www.olharanimal.net), colunista do
site Agência de Notícias de Direitos Animais (www.anda.jor.br) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com)
[2] Ver, por exemplo, os dados da FAO, disponíveis
em FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations,
"Global Capture Production 1950-2008", Fisheries and
Aquaculture Department, Global Statistical Collections, 2010, http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production/query/en;
"Global Capture Production 1950-2008", Fisheries and Aquaculture
Department, Global Statistical Collections, 2010,http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production/query/.
[3] Estatísticas disponíveis em MOOD, ALISON e
BROOKE, Phil, "Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each
Year", 2010, Fishcount.org.uk,http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf.
[4] NAGEL, Thomas. A Última Palavra. Trad. Carlos
Felipe Moisés. São Paulo :
UNESP, 2001, p. 13.
[5] Ibid.
[6] Cf. HORTA, Oscar. Ética Animal: El cuestionamiento
del Antropocentrismo: Distintos Enfoques Normativos. In: Revista de Bioética
y Derecho. N. 16. Barcelona :
Abril/2009, pp. 36-39.
[7] SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad.
Jefferson L. Camargo. São Paulo .
Martins Fontes, 2002, p. 32.
[8] Ibid, pp. 30-34.
[9] Cf. FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal
Rights: Your Child or the Dog? Philadelphia :
Temple University Press, 2000, p. 30.
[10] Ibid., pp. 31-50.
[11] Para um estudo
mais detalhado dessas comparações, ver HORTA, Oscar. Questions of Priority and
Interspecies Comparisons of Happiness. In: Ética mas Allá de la Espécie : La Consideración Moral
de los Animales no Humanos. 2010.http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05/questions_priority_interspecies.pdf. A analogia com 24 horas aparece em
uma palestra sobre o artigo, disponível em http://vimeo.com/25316618.
[12] Tais
argumentos são analisados em SINGER, Peter, "The Significance of Animal
Suffering", em Baird, Robert M. e Rosenbaum, Stuart E. (eds.), Animal
Experimentation: The Moral Issues (Amherst: Prometheus Books, 1991), pp.
57-66.
[13] Cf. BENTHAM, Jeremy. An Introduction to the
Principles of Morals and Legislation. Kitchener :
Batoche Books, 2000, cap 4.
[14] Cf. SINGER, Peter, "The Significance of
Animal Suffering", em Baird e Rosenbaum (eds.), op. cit., 57-66, p.
61.
[15] Uma
explicação mais detalhada sobre os conceitos de agente e paciente moral pode
ser encontrada em FELIPE, Sônia T.. Redefinindo a comunidade moral. In:
Maria de Lourdes Alves Borges; José Nicolau Hec (Orgs.). Kant:
liberdade e natureza. Florianópolis: Edufsc, 2005, p. 263-278.
[16] Cf. SAPONTZIS, Steve F., Morals, Reason and
Animals. Philadelphia : Temple University
Press, 1987, pp. 148-149.
[17] Cf.
HORTA, Oscar. Por qué la
Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. In: Ética
Más Allá de la Espécie : La Consideración Moral
de los Animales no Humanos, 2009.http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/
[18] DAWRST, Alan, "How Many Animals are
There?", In: Essays on Reducing Suffering, 2009,http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html.
[19] DAWKINS, Richard, River Out of Eden: A
Darwinian View of Life, New York: Harper Collins Publishers, 1996; DAWRST,
Alan, "The Predominance of Wild-Animal Suffering over Happiness: An Open
Problem", Essays on Reducing Suffering, 2009, http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf; GOULD, Stephen J., Hen's Teeth
and Horse's Toes: Further Reflections in Natural History, New York: W. W.
Norton, 1994, pp. 32-44; HORTA, Oscar, "Disvalue in Nature and
Intervention", Pensata Animal, 2010,http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta;
MILL John S.,Nature, The Utility of Religion and Theism, London: Rationalist
Press, 1904, pp. 7-33.
[20] NG, Yew-Kwang, Towards Welfare Biology: Evolutionary
Economics of Animal Consciousness and Suffering. In: Biology and
Philosophy, 10 (3), 1995, pp. 255-285.
[21] Ibid., p. 270.
[22] Ibid.
[23] Ibid., p. 271.
[24] Ibid.
[25] Ibid., p. 273.
[26] Cf. CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência
e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros
Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN
0211-6642. Cf. CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá
de la Espécie : La Consideración Moral
de los Animales no Humanos, 2011. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf
Luciano Carlos Cunha - lucianoshred@gmail.com
Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciado em Educação Artística
com habilitação em música pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC), colaborador da revista eletrônica Pensata Animal, colunista do site ANDA e autor do blog Desafiando o
Especismo.
Link para C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3030914980692075