O que é preciso fazer para transformar em atração turística
uma carroça destinada a puxar turistas desavisados por uma ilha, cidade ou
estância mineral?
É preciso atrelar um animal a essa carroça. Uma égua, um
cavalo. Ou dois. Um animal que tenha uma constituição apropriada para tracionar
cargas, pensa a maioria das pessoas. Concluímos, por termos sido desinformados
sobre a real natureza da musculatura equina, que os músculos e o esqueleto da
égua e do cavalo são uma espécie de força motricional natural para resolver
nossos problemas de arrastar pesos inertes pelos campos ou cidades, sejam eles
luxo ou lixo.
O que não sabemos, porque isso não é revelado por ninguém que
diz “amar os cavalos”, excetuando-se os equinólogos da Haute École
Nevzorov (Alexander Nevzorov e Lydia Nevzorova), é que um cavalo só pode
ser mantido atrelado a um objeto com espaço para qualquer tipo de carga, humana
ou residual, usando-se a boca do animal para infligir-lhe dores intensas, que
repercutem como choques nos nervos craniais que por ali passam, sem os quais o
animal não se moveria.
O freio na boca do cavalo agride violentamente os tecidos da
mucosa bucal, pressiona, de tal modo, a língua, que chega a atrofiá-la, impacta
as parótidas a ponto de a saliva produzida ter o aspecto de uma baba espumosa,
levando a uma alteração no pH do estômago que causará úlceras, cólicas e a
morte do animal.
Cada travada da carroça, para diminuir a velocidade ou parar
de todo, custa ao cavalo uma dor lancinante, pela pressão dos ferros instalados
dentro de sua boca. Uma carroça, seja ela tracionando lixo ou luxo, só pode ser
parada com dor. Para fazer com que uma carroça retome o movimento, é preciso infligir
dor, não a ela, obviamente, mas ao animal atrelado a ela, àquele que a
traciona. Smples assim. É assim que as coisas funcionam no mundo da “tração
equina”.
No comando da sessão de tortura de fazer uma carroça
carregada de turistas ou de entulho mover-se, ou parar, é preciso ter alguém
disposto a produzir dores lancinantes na boca do animal, quer o saiba, quer
não. Sem essa dor, o cavalo não se move. E, para isso, ele tem uma boa razão.
Os músculos equinos não foram desenhados nem designados para
tracionar peso de qualquer espécie. Por natureza, eles são projetados para o
animal mover-se com rapidez e agilidade em caso de ameaça predatória. Os
cavalos não são animais de combate. São animais de fuga. Mas, quando eles não
veem saída, eles estacam. Seus músculos são desenhados para que fuja da ameaça
da dor. Quando o atamos a qualquer artefato para poder usar a força natural
dele, nós o privamos, fisicamente, da função de usar seus músculos para
afastar-se velozmente de toda ameaça de dor; e, psicologicamente, nós o
privamos da liberdade de fazer o que seu éthos equino lhe ordena que
faça: que fuja o mais rapidamente possível do estímulo doloroso. Fazemos isso a
ele através de um meio ardiloso: nós o atrelamos ao objeto que lhe produzirá
dores intensas. Puro ardil!
Não é de graça que Alexander Nevzorov, em um de seus livros, The
horse crucified and risen, editado em 2011, afirma: “By any stretch of the
imagination, it is very difficult to find a subject more steeped in deception
than the relationship of man and horse.” Traduzindo livremente em bom
português, temos: “Por mais que forcemos nossa imaginação, é muito difícil
encontrar algo mais ardiloso do que a relação do homem com o cavalo.”
A sessão de tortura é completa. Praticamente, não há uma
área do corpo de um cavalo usado para tração e atração turística, ou para
tracionar carga inerte, monta, lixo, luxo ou entulhos, que não esteja lesada.
Ao atrelarmos esse animal e privarmos seu espírito da liberdade de mover-se de
modo a preservar-se saudável, infligimos a ele as lesões dolorosas que jamais
chegamos a ver quando o olhamos trotando pelas ruas com a carroça cheia de
turistas aboletados em seus assentos ou nas cavalgadas, com dezenas de
sedentários aboletados sobre o lombo ferido deles.
As lesões são tantas que chegam a matar o animal, ainda
atado à carroça. Estranhamente, para quem não tem acesso às informações sobre a
fisiologia e a psicologia equina, o cavalo morre esgotado, amarrado ao artefato
de tortura que lhe sugou a força, a saúde e a vida. E, pensam as pessoas
desavisadas, ele não “parecia” doente, “ele não dava sinal de dor ou doença”! É
que a gente está muito acostumada a gemer, gritar por socorro e a pedir que nos
ajudem, quando sofremos dores estranhas lancinantes, ou quando somos torturadas.
Na natureza, o desenho da mente de um equino, como o da
mente de um bovino, não foi projetado para fazer o animal manifestar a dor
através de sons ou vocalizações. Isso atrairia os predadores para o animal
ferido, dorente ou sofrente (na expressão de Sir Dr. Richard D. Ryder, que
cunhou os termos painism e painient em 1990, em seu livro Painism).
Esses animais estão morrendo de dor e não soltam um
relincho. Eles têm medo de relinchar de dor. Medo de serem mortos pelos
predadores. O que eles fazem, quando estão dorentes e sofrentes? Eles ficam
parados e não emitem som algum. Essa é a linguagem equina de expressão da dor, análoga
à bovina.
A dor na boca é intensa, com aquele ferro enfiado lá dentro.
Os cavalos o mastigam sem parar. E há quem explique que essa “mastigação” do
freio é “vício”. Dois erros não fazem um acerto. Colocar o freio na boca de um
cavalo é machucá-la na certa. Explicar que ele mastiga esse ferro que o machuca
por vício é humilhá-lo. Sem mãos para arrancar da própria boca o instrumento de
tortura, o animal o mastiga, desesperadamente, na expectativa de o expulsar
dali. Se alguém quer ter uma provinha do tormento do cavalo com freio na boca,
coloque agora uma caneta atravessada sobre sua língua, enquanto lê o texto até
o final. Apare a baba com um guardanapo, porque engolir direito será
impossível. Se quiser saber o que é o dia de um cavalo, passe suas oito horas
de trabalho com a caneta atravessada sobre a língua. Melhor mesmo seria uma
barra de metal, para sentir o gosto dele na boca o dia todo. Ah! Peça para
alguém travar a barra com um cadeado atrás de sua nuca, para que não possa
arrancar esse troço dali com as mãos. O jeito será passar o dia “mastigando”
viciosamente o objeto.
Não bastasse a dor na boca, as fraturas nos dentes molares
(justamente os que o animal precisa para mastigar a comida), causadas pelo
puxão do freio, seja quando a carroça está se movendo muito rapidamente, seja
quando o cavalo se recusa a dar partida (a linguagem equina para dizer ao
“inteligente humano” que ele está dorente), o cavalo leva umas chibatadas que
atritam os tecidos de seu lombo ou flancos a ponto de os “incendiar” ou
inflamar.
Os tecidos inflamados não estão à vista do olhar desavisado,
e mesmo a muito olhar formado para ver o que nós, leigas, não podemos ver. Mas
exames cintilográficos ou termográficos mostram sem deixar dúvidas o estado de
inflamação de quase todas as partes do corpo do cavalo, expostas a todo tipo de
atrito: desde o causado pelas trelas aos quais o amarram à carroça, até os
causados pelas chibatadas destinadas a fazer esse animal mover a carga que lhe
causa dor. O mesmo ocorre aos animais usados para monta.
Quando nos exercitamos na academia, nossos músculos ficam
carregados de ácido lático, a causa das dores do dia seguinte. Os músculos dos
cavalos também. Forçados a tracionar cargas todos os dias, por horas a fio,
esses animais têm sua fisiologia completamente deformada, suas necessidades
atrofiadas. Um cavalo pasta por 12 a 14 horas a grama fresca, se vive em seu
ambiente natural. Essa atividade é uma das mais importantes para a preservação
de sua saúde digestória e longevidade.
Usado como escravo, o cavalo mal e mal ganha uma refeição
por dia, e, bem o sabemos, as condições desse alimento podem não ser nada
favoráveis à boa digestão, à saúde e à longevidade. Capim murcho, velho e seco,
cheio de fungos, isso não é alimento equino, se é que se pode chamar lixo
orgânico de alimento, seja lá para qual for a espécie de animal.
Se a dor de um equino, atrelado à carroça carregada de
humanos, é a chave de ignição e o freio do movimento dessa carroça, não é que
ela seja algo prazeroso. O estímulo é doloroso, queimante e paralisante. Os
humanos que conduzem essas carroças o usam para forçar o animal dorente a se
mover e outra vez o usam para forçar o animal sofrente a parar. Todos os dias.
E a dor está espalhada na boca e na face, pois, com a língua travada para baixo
pela pressão do freio, o animal não pode engolir saliva. E a glândula parótida,
também lesionada pelo freio, não pode produzir a saliva normalmente.
O animal tem dores na língua, nos dentes, nas mandíbulas, na
garganta, nos pulmões, no estômago, nos músculos, nos joelhos, nos tornozelos,
no ombro, na patas. Ah! As patas! Uma tortura especial, essa das lesões nas
patas, causadas tanto pelos cravos que pregam ali para firmar as ferraduras,
quanto pelas pisadas sobre objetos pontiagudos (cacos de vidro, pedrinhas
pontudas, cacos de plásticos seco, pedaços de ferro, lâminas), enfim, tudo que
é lixo espalhado pelo trajeto sobre o qual o cavalo põe quatro áreas do seu corpo
em contato direto com o solo que ele não tem permissão de escolher não pisar,
algo que faria na natureza, usando seus olhos atentos, para se proteger de
ferimentos, justamente as quatro partes do seu corpo sobre as quais ele precisa
sustentar seu próprio peso; mas, no caso de animais usados para atrair e
tracionar turistas, esse peso é duplicado ou triplicado. Se o cavalo pesa 350
kg, puxando uma carroça com meia dúzia de turistas, mais o peso da própria
carroça, temos aí pelo menos mais uns 500 kg acima do peso do corpo do animal.
Alguém que pese 60 kg já se imaginou puxando uma carga de
130 kg por oito ou dez horas por dia, tendo um ferro atravessado sobre a língua,
ao qual o contêiner com essa carga está amarrado, e um outro animal comandando
a puxada e a freiada com um safanão nas trelas atadas à boca? Essa dorência
ainda não descreve a agonia dos cavalos. Acrescente a ela a dor das dez unhas
do pé, encravadas, para se poder ter uma idéia do que sofre um cavalo com as
patas atrofiadas, inflamadas e infectadas, forçado a puxar cargas turísticas ou
lixo pelas cidades. E, caso ele empaque, o condutor tem à mão o chicote, para
lhe vergar as carnes e “quebrar” sua “teimosia” em não se mover para não doer
ainda mais. É assim que ele morre “subitamente”, após uma agonia que durou
anos, nada “súbita”, nada “sutil”, para ele. Sutileza, nesse caso, quem aprecia
é quem o matou de dor e exaustão. Gente muito fina. Fininha mesmo. Sem espaço
algum para a sensibilidade e a compreensão da dor alheia, da morte alheia.
Toda tração turística doída só pode mesmo produzir uma
dolorosa atração turística. E quem sofre a pena do martírio é o cavalo,
sozinho, indefeso, escravizado. Isso precisa ter fim. Alforria já! Paquetá,
Poços de Caldas, Petrópolis e em todas as cidades do nosso país, em Londres e
em Nova Iorque também, pois todos os animais são iguais em senciência.
Acabou-se a nossa inocência. Conforme o diz Philip Low, “agora já não se pode
mais dizer que não se sabe disso”.
Dr. phil. Sônia T. Felipe é filósofa, escritora,
ativista pelos direitos animais, autora dos livros: Ética e experimentação
animal: fundamentos abolicionistas; Galactolatria: mau deleite; Acertos
abolicionistas: a vez dos animais.