Marca renomada de bonecas produz boneca negra com espanador:
"neguinha do espanador", desenhada por uma mulher, que, ao receber
críticas dos negros e de outros movimentos sociais, diz que cada pessoa
interpreta o que ela fez de acordo com seu nível cultural, tipo: se você
critica minha boneca, você é pouco culto, pois se eu sou artista eu tenho o direito
de fazer o que bem entendo, pois a liberdade de expressão me assiste, ou algo
desse teor.
Marca famosa de brinquedos lança caminhão carregando animais
criados para o abate. “Ora bolas, são apenas brinquedos inocentes!” Não são.
Brinquedos são instrumentos como o estilete, poderosos na
formatação mental, moral, estética e política. Como assim? "Assim ó"
(como usa falar essa manezinha sem nível cultural, aqui na ilha): "quando
a gente aprende algo brincando, aprende com prazer, e então tudo é melhor memorizado
e dificilmente esquecido. O que é gravado com prazer vai para aquela área do
cérebro, o sistema límbico profundo, na qual o que mais emociona fica
estruturando de modo associativo o resto que entrar naquela mesma frequência
daí por diante." Expliquei. De acordo com o meu "nível
cultural".
O prazer é a porta por onde entra o design moral, o prazer é
o filtro que estrutura tudo em nossa mente, todos os conceitos, dos mais
ferrenhos religiosos aos mais anárquicos políticos, tudo, tudo mesmo, entra e
se fixa ali com um único adesivo: o prazer sentido.
Boneca negra com espanador de pó. Mulher. Negra. Brinquedo
para ensinar que espanador é objeto apropriado para mãos de mulheres. Para as
mãos de mulheres negras, é bom que isso fique muito bem claro. Boneco branco,
de olhos azuis, com espanador na mão? Ah! Só se for para desmerecer alguém
branco que não tenha resguardado seu valor de branco de olhos azuis. Todos os
brancos, de olhos não azuis, poderiam entrar na lista. Mas não entram, porque
está claro para os designers, está claro para os empresários que aprovam um
projeto de uma nova boneca que homenageia as negras de forma discriminadora,
que eles não querem um mundo no qual o único objeto apropriado para estar nas
mãos de um branco de olhos azuis seja um espanador de pó. Mas está mais claro
ainda, para essa gente, que um espanador de pó é um objeto apropriado para
estar nas mãos negras.
Fico aqui encasquetando com a resposta da artista. Ela diz
que, com sua arte, quer homenagear as mulheres negras. Mas na foto de sua
entrevista ela aparece diante de uma tela com um pincel na mão, porque, ora
bolas, ela é descendente de afros e pinta telas. Mas para homenagear as negras
ela desenha uma boneca com espanador e não com pincel nas mãos. Quanta promessa
de formas de expressão da mulher negra ela sugere às meninas negras que mal
nasceram? Ser faxineira, ou ser pintora? Ser faxineira, claro.
Eles não querem isso para um homem branco de olhos azuis.
Eles querem isso para uma negra. Espanadora de pó.
A menina ganha uma boneca dessas e brinca com ela. O que
dirá ela à boneca, em sua atividade lúdica? Dirá a ela que está na hora de
tirar o pó dos objetos. Duas mulheres. Uma princesa branca e uma boneca negra
em posições hierárquicas bem distintas: uma manda a outra tirar o pó dos
objetos, limpar a casa. Não há reversão de papeis.
Como se o racismo e o machismo embutidos nesse nada inocente
brinquedo não bastassem, aproveitaram o impulso fortíssimo de discriminação e
já compuseram a cena com outro brinquedo, certamente não destinado às meninas
brancas, mas aos meninos brancos: um caminhão carregado de animais em viagem.
Mas, bem o sabemos, aquele tipo de animal ali representado faz apenas uma
viagem de caminhão: à câmara de sangria.
Racismo, machismo e especismo não nascem na cabeça da pessoa
depois que ela se torna adulta. Não mesmo. Essa forma de desenhar o mundo
hierarquizando as vidas, estabelecendo fins para as vidas dos outros, sempre em
função dos próprios interesses a serem atendidos, é algo construído desde antes
de o bebê humano nascer. Desde a cor das roupas, dos detalhes da decoração, das
figuras que comporão o cenário no qual essa bebê ou esse bebê abrirão pela
primeira vez os olhos para olhar algo que não seja o seio da mãe, tudo é
matéria formatadora de conceitos, preparando a mente para um mundo cheio de divisórias,
de divisões, de cisões, de cizânias, um mundo no qual uns manejam a vida dos
outros até os exaurirem e em seguida os abatem sem o menor pudor, mas sempre
“humanitariamente”.
Os brinquedos, assim como os primeiros livros infantis e,
especialmente, os livros didáticos, aí estão para formatar a mente nos moldes
da moralidade racista, machista e especista. Justamente essa mesma moralidade
está levando à ruína o planeta, devastando as reservas de grãos, cereais e de
água, esse mundo que está tão carregado de excrementos dos 70 bilhões de
animais criados todos os anos para o abate, que não há espanador nas mãos de
bonecas negras que conseguirá abater tanta sujeira desse mundo.
E a imundície do mundo não está depositada na forma de pó
sobre livros, mesas e estantes. A imundície do mundo está depositada na mente
formatada para reproduzir sem perceber e sem sentir o que o mundo tanto gosta
de ver reencenado: o especismo, o machismo e o racismo, na verdade uma forma
única de ser preconceituoso contra tudo o que não puder ser enquadrado na
“espécie certa de vida” na qual nascem os que têm essas ideias, essas, as de
fazer bonecas negras com espanadores na mão e caminhões com animais
transportados para o abate.
É assim que ensinamos as crianças a naturalizarem formas de
torturar seres que não podem se defender da opressão e do domínio tirânico que
se abate sobre suas vidas.
Os brinquedos que damos às crianças são armas para
construção de um mundo no qual uns acham que são dignos de viver somente se
tiverem o poder e o prazer de abater os outros. Obviamente, a "neguinha do
espanador" e o caminhão da fazenda cheio de animais para o abate não
"pretendem" defender o racismo e o especismo. Mas o fazem, sem que
seus designers o percebam, o que é mais assustador ainda.
Sônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia
Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro
de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em
Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002).
Autora dos livros Acertos abolicionistas: a vez dos animais
(Ecoânima, 2014); Ética e experimentação animal: fundamentos
abolicionistas (Edufsc, 2007;2014); Galactolatria: mau deleite
(Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos(Ecoânima,
2012); Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter
Singer em defesa dos animais (Boiteux, 2003).
Colaboradora nas coletâneas, Somos todos animais (ANDA,
2014); Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e
justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e
Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos
fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal
6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e
políticas ambientais (Lisboa, 2004);Tendências da ética contemporânea (Vozes,
2000).