Diante da injustiça, a covardia se veste de silêncio (Julio Ortega) - frase do blog http://www.findelmaltratoanimal.blogspot.com/

domingo, 1 de março de 2015

BRINQUEDOS SÃO ESTILETES PODEROSOS DE FORMATAÇÃO MORAL


Marca renomada de bonecas produz boneca negra com espanador: "neguinha do espanador", desenhada por uma mulher, que, ao receber críticas dos negros e de outros movimentos sociais, diz que cada pessoa interpreta o que ela fez de acordo com seu nível cultural, tipo: se você critica minha boneca, você é pouco culto, pois se eu sou artista eu tenho o direito de fazer o que bem entendo, pois a liberdade de expressão me assiste, ou algo desse teor.


Marca famosa de brinquedos lança caminhão carregando animais criados para o abate. “Ora bolas, são apenas brinquedos inocentes!” Não são.

Brinquedos são instrumentos como o estilete, poderosos na formatação mental, moral, estética e política. Como assim? "Assim ó" (como usa falar essa manezinha sem nível cultural, aqui na ilha): "quando a gente aprende algo brincando, aprende com prazer, e então tudo é melhor memorizado e dificilmente esquecido. O que é gravado com prazer vai para aquela área do cérebro, o sistema límbico profundo, na qual o que mais emociona fica estruturando de modo associativo o resto que entrar naquela mesma frequência daí por diante." Expliquei. De acordo com o meu "nível cultural".

O prazer é a porta por onde entra o design moral, o prazer é o filtro que estrutura tudo em nossa mente, todos os conceitos, dos mais ferrenhos religiosos aos mais anárquicos políticos, tudo, tudo mesmo, entra e se fixa ali com um único adesivo: o prazer sentido.

Boneca negra com espanador de pó. Mulher. Negra. Brinquedo para ensinar que espanador é objeto apropriado para mãos de mulheres. Para as mãos de mulheres negras, é bom que isso fique muito bem claro. Boneco branco, de olhos azuis, com espanador na mão? Ah! Só se for para desmerecer alguém branco que não tenha resguardado seu valor de branco de olhos azuis. Todos os brancos, de olhos não azuis, poderiam entrar na lista. Mas não entram, porque está claro para os designers, está claro para os empresários que aprovam um projeto de uma nova boneca que homenageia as negras de forma discriminadora, que eles não querem um mundo no qual o único objeto apropriado para estar nas mãos de um branco de olhos azuis seja um espanador de pó. Mas está mais claro ainda, para essa gente, que um espanador de pó é um objeto apropriado para estar nas mãos negras.

Fico aqui encasquetando com a resposta da artista. Ela diz que, com sua arte, quer homenagear as mulheres negras. Mas na foto de sua entrevista ela aparece diante de uma tela com um pincel na mão, porque, ora bolas, ela é descendente de afros e pinta telas. Mas para homenagear as negras ela desenha uma boneca com espanador e não com pincel nas mãos. Quanta promessa de formas de expressão da mulher negra ela sugere às meninas negras que mal nasceram? Ser faxineira, ou ser pintora? Ser faxineira, claro.

Eles não querem isso para um homem branco de olhos azuis. Eles querem isso para uma negra. Espanadora de pó.

A menina ganha uma boneca dessas e brinca com ela. O que dirá ela à boneca, em sua atividade lúdica? Dirá a ela que está na hora de tirar o pó dos objetos. Duas mulheres. Uma princesa branca e uma boneca negra em posições hierárquicas bem distintas: uma manda a outra tirar o pó dos objetos, limpar a casa. Não há reversão de papeis.

Como se o racismo e o machismo embutidos nesse nada inocente brinquedo não bastassem, aproveitaram o impulso fortíssimo de discriminação e já compuseram a cena com outro brinquedo, certamente não destinado às meninas brancas, mas aos meninos brancos: um caminhão carregado de animais em viagem. Mas, bem o sabemos, aquele tipo de animal ali representado faz apenas uma viagem de caminhão: à câmara de sangria.

Racismo, machismo e especismo não nascem na cabeça da pessoa depois que ela se torna adulta. Não mesmo. Essa forma de desenhar o mundo hierarquizando as vidas, estabelecendo fins para as vidas dos outros, sempre em função dos próprios interesses a serem atendidos, é algo construído desde antes de o bebê humano nascer. Desde a cor das roupas, dos detalhes da decoração, das figuras que comporão o cenário no qual essa bebê ou esse bebê abrirão pela primeira vez os olhos para olhar algo que não seja o seio da mãe, tudo é matéria formatadora de conceitos, preparando a mente para um mundo cheio de divisórias, de divisões, de cisões, de cizânias, um mundo no qual uns manejam a vida dos outros até os exaurirem e em seguida os abatem sem o menor pudor, mas sempre “humanitariamente”.

Os brinquedos, assim como os primeiros livros infantis e, especialmente, os livros didáticos, aí estão para formatar a mente nos moldes da moralidade racista, machista e especista. Justamente essa mesma moralidade está levando à ruína o planeta, devastando as reservas de grãos, cereais e de água, esse mundo que está tão carregado de excrementos dos 70 bilhões de animais criados todos os anos para o abate, que não há espanador nas mãos de bonecas negras que conseguirá abater tanta sujeira desse mundo.

E a imundície do mundo não está depositada na forma de pó sobre livros, mesas e estantes. A imundície do mundo está depositada na mente formatada para reproduzir sem perceber e sem sentir o que o mundo tanto gosta de ver reencenado: o especismo, o machismo e o racismo, na verdade uma forma única de ser preconceituoso contra tudo o que não puder ser enquadrado na “espécie certa de vida” na qual nascem os que têm essas ideias, essas, as de fazer bonecas negras com espanadores na mão e caminhões com animais transportados para o abate.

É assim que ensinamos as crianças a naturalizarem formas de torturar seres que não podem se defender da opressão e do domínio tirânico que se abate sobre suas vidas.

Os brinquedos que damos às crianças são armas para construção de um mundo no qual uns acham que são dignos de viver somente se tiverem o poder e o prazer de abater os outros. Obviamente, a "neguinha do espanador" e o caminhão da fazenda cheio de animais para o abate não "pretendem" defender o racismo e o especismo. Mas o fazem, sem que seus designers o percebam, o que é mais assustador ainda.


Sônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002).
Autora dos livros Acertos abolicionistas: a vez dos animais (Ecoânima, 2014); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2007;2014); Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos(Ecoânima, 2012); Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais (Boiteux, 2003).
Colaboradora nas coletâneas, Somos todos animais (ANDA, 2014); Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004);Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).