Por Gabriel Kogan
Gostaria de desmistificar alguns pontos sobre a crise hídrica em
SP, assunto que tangencia minhas pesquisas acadêmicas.
1-
“Não choveu e por isso está faltando água”. Essa conclusão é cientificamente
problemática. Existem períodos chuvosos e de estiagem, descritos
estatisticamente. É natural que isso ocorra. A base de dados de São Paulo possibilita
análises precisas desde o século XIX e projeções anteriores a partir de
cálculos matemáticos. Um sistema de abastecimento eficiente precisa ser
projetado seguindo essas previsões (ex: estiagens que ocorram a cada cem anos).
2-
“É por causa do aquecimento global”. Existem poucos estudos verdadeiramente
confiáveis em São Paulo. De qualquer forma, o problema aqui parece ser de
escala de grandeza. A não ser que estejamos realmente vivendo uma catástrofe
global repentina (que não parece ser o caso esse ano), a mudança nos padrões de
chuva não atingem porcentagens tão grandes capazes de secar vários
reservatórios de um ano para o outro. Mais estudadas são as mudanças climáticas
locais por causa de ocupação urbana desordenada. Isso é concreto e pode trazer
mudanças radicais. Aqui o problema é outro: as represas do sistema Cantareira
estão longe demais do núcleo urbano adensado de SP para sentir efeitos como de
ilha de calor. A escala do território é muito maior.
3-
“Não choveu nas Represas”. Isso é uma simplificação grosseira. O volume do
reservatório depende de vários fluxos, incluindo a chuva sobre o espelho d’água
das represas. A chuva em regiões de cabeceira, por exemplo, pode recarregar o
lençol freático e assim aumentar o volume de água dos rios. O processo é muito
mais complexo.
4-
“As próximas chuvas farão que o sistema volte ao normal”. Isso já é mais
difícil de prever, mas tudo indica que a recuperação pode levar décadas. Como
sabemos, quando o fundo do lago fica exposto (e seco), ele se torna permeável.
Assim a água que voltar atingir esses lugares percola (infiltra) para o lençol
freático, antes de criar uma camada impermeável. Se eu fosse usar minha
intuição e conhecimento, diria que São Paulo tem duas opções a curto-médio
prazo: (a) usar fontes alternativas de abastecimento antes que possa voltar a
contar com as represas; (b) ter uma redução drástica em sua economia para que
haja diminuição de consumo (há relação direta entre movimento econômico e
consumo de água).
5-
“Não existe outras fontes de abastecimento que não as represas atuais”. Essa
afirmação é duplamente mentirosa. Primeiro porque sempre se pode construir
represas em lugares mais e mais distantes (sobretudo em um país com esse
recurso abundante como o Brasil) e transportar a água por bombeamento. O
problema parece ser de ordem econômica já como o custo da água bombeada de
longe sairia muito caro. Outra mentira é que não podemos usar água subterrânea.
Não consigo entender o impedimento técnico disso. O Estado de São Paulo tem
ampla reserva de água subterrânea (como o chamado aquífero Guarani), de onde é
possível tirar água, sobretudo em momentos de crise. Novamente, o problema é
custo de trazer essa água de longe que afetaria os lucros da Sabesp.
6-
“O aquífero Guaraní é um reservatório subterrâneo”. A ideia de que o aquífero é
um bolsão d’água, como um vazio preenchido pelo líquido, é ridiculamente
equivocada. Não existe bolsão, em nenhum lugar no mundo. O aquífero é
simplesmente água subterrânea diluída no solo. O aquífero Guaraní, nem é mesmo
um só, mas descontínuo. Como uma camada profunda do lençol freático. Em todo
caso, países como a Holanda acham o uso dessas águas tão bom que parte da
produção superficial (reservatórios etc) é reinserida no solo e retirada
novamente (!). Isso porque as propriedades químicas do líquido são,
potencialmente, excelentes.
7-
“Precisamos economizar água”. Outra simplificação. Os grandes consumidores
(indústrias ou grandes estabelecimentos, por exemplo) e a perda de água por
falta de manutenção do sistema representam os maiores gastos. Infelizmente os
números oficiais parecem camuflados. A seguinte conta nunca fecha: consumo
total = esgoto total + perda + água gasta em irrigação. Estima-se que as perdas
estejam entre 30% e 40%. Ou seja, essa quantidade vaza na tubulação antes de
atingir os consumidores. Água tratada e perdida. Para usar novamente o exemplo
Holandês (que estudei), lá essas perdas são virtualmente 0%. Os índices
elevados não são normais e são resultados de décadas de maximização de lucros
da Sabesp ao custo de uma manutenção precária da rede.
8-
“Não há racionamento”. O governo está fazendo a mídia e a população de boba. Em
lugares pobres o racionamento já acontece há meses, dia sim, dia não (ou mesmo
todo dia). É interessante notar que, historicamente, as populações pobres são
as que sempre sentem mais esses efeitos (cito, por exemplo, as constantes
interrupções no fornecimento de água no começo do século XX nos bairros
operários das várzeas, como o Pari). A história se repete.
9-
“É necessário implantar o racionamento”. Essa afirmação é bem perigosa porque
coloca vidas em risco. Já como praticamente todas as construções na cidade têm
grandes caixas d’água, o racionamento apenas ataca o problema das perdas da
rede (vazamentos). É tudo que a Sabesp quer: em momentos de crise fazer
racionamento e reduzir as perdas; sem diminuição de consumo, sem aumentar o
controle de vazamentos. O custo disso? A saúde pública. A mesma trinca por onde
a água vaza, se não houver pressão dentro do cano, se transformará em um ponto
de entrada de poluentes do lençol freático nojento da cidade. Estaremos
bebendo, sem saber água poluída, porque a poluição entrou pela rede urbana. Por
isso que agências de saúde internacionais exigem pressão mínima dentro dos
canos de abastecimento.
10-
“Precisamos confiar na Sabesp nesse momento”. A Sabesp é gerida para maximizar
lucros dos acionistas. Não está preocupada, em essência, em entregar um serviço
de qualidade (exemplos são vários: a negligência no saneamento que polui o Rio
Tietê, o uso de tecnologia obsoleta de tratamento de água com doses cavalares
de cloro e, além, da crise no abastecimento decorrente dos pequenos
investimentos no aumento do sistema de captação). A Sabesp é apenas herdeira de
um sistema que já teve várias outras concessionárias: Cantareira Águas e
Esgotos, RAE, SAEC etc. A empresa tem hoje uma concessão de abastecimento e
saneamento. Acredito que é o momento de discutir a cassação dessa outorga, uma
vez que as obrigações não foram cumpridas. Além, é claro, de uma nova administração
no Governo do Estado, ao menos preocupada em entregar serviços público e não
lucros para meia dúzia apenas.
Enfim,
se eu pudesse resumir minhas conclusões: a crise no abastecimento não é
natural, mas sim resultado de uma gestão voltada para a maximização de lucros
da concessionária e de um Governo incompetente. Simples assim, ou talvez,
infelizmente, nem tanto.
Gabriel
Kogan é arquiteto e jornalista, formado na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP; desenvolveu mestrado em Gerenciamento Hídrico no UNESCO-IHE
(Holanda), onde pesquisou as origens históricas das enchentes em São Paulo.