Diante da injustiça, a covardia se veste de silêncio (Julio Ortega) - frase do blog http://www.findelmaltratoanimal.blogspot.com/

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Cavalos escravos: dor e sofrimento




Por Dr. phil. Sônia T. Felipe, no site Olhar Animal

Sabemos, há milênios, da existência de sensibilidade consciente em todos os animais, algo que acaba de ser confirmado pela Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Humanos e Animais, proclamada em 7 de julho de 2012, na Inglaterra. Sabemos que eles têm inteligência, memória e raciocínio. Os filósofos greco-romanos (Ovídio, Sêneca, Plutarco e Porfírio), assim como Aristóteles, reconheciam que um nível não desprezível de racionalidade era próprio dos animais, não apenas dos humanos.

Mesmo assim, por conta da teoria do filósofo francês René Descartes (1596-1650), de que não haveria consciência em animais não-humanos, porque eles não possuiriam uma linguagem, passamos os últimos 400 anos fazendo tudo o que quisemos contra os animais, escravizando-os, explorando seus corpos e experimentando neles todos os venenos inventados ou descobertos pela ciência química.
E gabamo-nos de que os animais foram criados por Deus para nosso serviço, porque não teriam nossa inteligência. Não foram. Se o foram, então também devemos ser escravizados, pelos mais fortes ou mais astutos, porque somos igualmente animais, muitas vezes com pouca inteligência, comparada à poderosa inteligência que a tudo escraviza e assombra.
Por conta da inocência de algumas espécies animais, do prazer de conviver com os humanos, nós as domesticamos. Galinhas, porcas, ovelhas, cabras, vacas, éguas e tantas outras fêmeas foram seduzidas pelo calor, abrigo, alimento e companhia de humanos nos últimos dez mil anos.
Com o passar do tempo, os humanos construíram formas de deter os animais junto a si, para os usar como podiam, e podem cada vez mais, e tirar deles: força de tração, carnes, peles, couro, lã, leite, ovos, remédio e diversão.
Nada escapa à lógica que ordena extrair o máximo de vantagem de qualquer criatura vulnerável, pois os animais são considerados objetos dos quais os humanos podem tomar posse, vender como mercadorias, explorar como escravos e matar.
Os cavalos não são exceção. Nem os usados para atrair turistas, nem os usados para puxar cargas de resíduos sólidos recicláveis pelas cidades. Condenados à prisão perpétua e aos trabalhos forçados, longe dos campos nos quais selvagemente galoparam por milhares de anos de vida livre, hoje existem como figuras tristes na paisagem urbana, maltratados, famintos, sedentos, cheios de cicatrizes e feridas causadas pelo uso do aparato de ferro e cangas atrelados a seus corpos para que puxem carroças carregadas de humanos que bem poderiam mover-se por suas próprias pernas, levando seus corpos a passearem por onde quisessem, sem precisar maltratar nenhum animal. Mas, não.
Os prospectos turísticos da cidade incitam os turistas a usarem o serviço do equino escravizado, como se isso fosse a coisa mais bela que uma cidade pudesse oferecer aos estranhos que a visitam. E os estranhos, seguindo a in-consciência dos nativos, usam o trabalho escravo dos equinos, sem dó nem piedade. Em sua mente, a palavra cavalo é sinônimo de força de tração, força de deslocamento ou meio de transporte.
Ninguém pensa de si mesmo que, se tem músculos fortes, então isso quer dizer que nasceu para ser escravizado e puxar cargas alheias. Ninguém pensa que tem músculos fortes para carregar pesos que excedam uma vez e meia o próprio. Ninguém pensa isso de si. E quem pensa faz um contrato de prestação desse serviço.
Mas todo mundo que usa charretes puxadas por cavalos, em qualquer cidade do mundo, em qualquer país, acha natural andar de charrete como se fosse da natureza equina puxar charretes. Tão natural que chegam a abarrotar o veículo com sete pessoas, num total de uns 600 kg, somando-se o da carroça e o das pessoas, quando o peso do cavalo pode não passar ou nem chegar aos 500 kg. Ninguém pensa nisso. Todo mundo sobe na carroça (nome chique mesmo é charrete), paga ao boleeiro, não paga ao cavalo nem em alimento, nem em água, não paga hora extra, nem décimo terceiro salário, nem descanso semanal, nem férias.
E o cavalo trabalha todos os dias, a vida toda. Até cair morto, exaurido, ou doente, quando então ninguém mais o vê, e fica sob a tutela daqueles que o exploraram e exauriram a vida toda, o que é sinal de que não receberá cuidados devidos na doença ou na velhice.
Ao subir nas charretes, nenhuma turista examina atentamente o corpo do animal, seu peso, seu olhar, suas feridas ou cicatrizes de antigas feridas. Ninguém se interessa pelo animal cuja força de tração o puxará cidade acima e abaixo. Os humanos, seguindo a indiferença do boleeiro, do “dono do cavalo”, sobem na charrete e se deixam levar pelo animal, exatamente como há menos de duzentos anos faziam, subindo em liteiras levadas morro acima e abaixo, sob sol forte, seca, vento cortante ou chuva fria, pela força escravizada de homens negros.
Mas esse cavalo puxando charretes é um animal dotado de sensibilidade e consciência de tudo o que fazem ao corpo dele, de tudo o que fazem a ele. Esses cavalos escravizados, como todos os outros animais, são animais dorentes e sofrentes (termos criados por Richard D. Ryder em 1990 para designar a condição dos animais sob o jugo humano e não deixar que a ética perca seu foco).
Tudo o que se faz ao corpo deles, das trelas atadas firmemente com argolas de ferro, do freio atravessado em sua boca, das chinchas que o prendem às hastes da charrete, dos antolhos que os impedem de observar o ambiente para poderem mover-se em segurança, ao chicote com o qual são açoitados para atenderem aos comandos do boleeiro, tudo é fonte de agonia para o animal. Acostumado? Sim. Mas o costume de ser açoitado e amarrado não tira do cérebro do animal, nem do humano escravizado, a sensação dolorosa de privação de liberdade, ou a das inflamações causadas pela brutalidade do homem que o força a puxar a charrete.
Conforme o afirma o médico britânico, Dr. John Webster (Understanding the Dairy Cow), estudioso da dor em animais não-humanos, quanto mais tempo uma dor é infligida a um animal, maior a sensibilidade a ela. Se você tem uma ferida e sobre ela amarram uma corda para lhe fazer puxar uma caixa muito pesada, mais pesada do que seu próprio corpo, essa ferida lhe causará mais dor ainda. Se isso se repetir, a dor ficará cada vez mais intensa.
Mas os cavalos não reagem à dor! Sim, há espécies que não expressam a dor, porque na natureza, se o fizerem serão alvo dos predadores. Ah! Mas o cavalo não relincha de dor! Não mesmo? Mas isso não quer dizer que ele não a sinta. O que quer dizer é que ele sente duas vezes o que está acontecendo com ele: a dor do ferimento e o pavor de virar alvo de um predador, por estar ferido, caso relinche. Bovinos também reagem assim à dor.
Os cavalos não usam palavras. Nenhum outro animal que não o humano usa palavras. Isso não quer dizer que eles não tenham linguagem. Eles a têm. Sua linguagem é inteiramente corporal. Tudo o que estamos sentindo o cavalo percebe por conta do modo como mantemos nosso corpo ou fazemos movimentos em sua presença. Não precisamos falar com o cavalo para ele saber o que queremos dele. Ele sabe, pelo modo como nos comportamos junto a ele. Ele sabe, igualmente, de si. E, por natureza, não faz coisa alguma contrariando sua própria vontade, pois essa é genuína.
Em estado natural, para ser um equino, basta aprender com sua mãe como conduzir seu corpo no meio da manada, respeitando a hierarquia natural que a põe no posto de alfa, enquanto a jovem ou o jovem precisam aprender a ser aquilo para o qual nasceram. E a natureza, sim, tem um cavalo, mas ela o fez para cavalgar livre pelos campos, por, pelo menos, umas 18 horas por dia. Livres. Sem cargas para transportar. Seus músculos fortes estão ali para impulsionar seus corpos no ar, sim, porque cavalos nasceram, também, para “voar”. Quando galopam, voam pelos campos, crinas ao vento, fortes e velozes, causando inveja aos humanos sem asas e com pouca musculatura de impulso.
A inteligência dos cavalos é tal que eles pensam antes de tomarem qualquer decisão. Fazem muitas coisas no piloto automático, como também o fazemos. Mas sempre que algo novo interfere em seus hábitos, o cavalo raciocina até encontrar a forma mais segura de seguir adiante. Sua linguagem é absolutamente corporal e única. Apenas equinos a usam, como apenas alguns animais marinhos usam a bioluminescência para se comunicarem, e só eles a compreendem, porque nós, humanos, do alto do que consideramos a maior inteligência do planeta, somos tão rígidos em nossa linguagem que ficamos a exigir que os animais a aprendam, mas não envidamos esforços para decifrar a deles e nos comunicarmos com eles. Jane Goodall fez isso com os chimpanzés e Monty Roberts com os cavalos.
Segundo Roberts, cavalos, por natureza, não são animais de luta, são animais de fuga. Duplo tormento, para eles, serem atados a artefatos de guerra ou de cargas, pois qualquer ameaça será sentida como pânico, devido ao fato de não poderem fugir dela. Sua musculatura está evoluída para a fuga, não para o combate. Sua tendência natural, ao ser chicoteado, seria fugir. Mas, atado às correias que o ligam à charrete, cada chicoteada é mais uma fonte de sofrimento, porque está impedido de fugir. É o que ocorre na tortura de humanos.
Não é fácil para qualquer animal estar no polo das presas. E todo animal de fuga está. Humanos podem lutar ou fugir, de acordo com sua consciência da possibilidade de vitória. Cavalos, sabiamente, por conta de sua musculatura que favorece o impulso do galope, são evoluídos para fugir de toda ameaça, e, fugindo, conseguiram sobreviver até serem encontrados pelos humanos e terem sua vontade de fuga “domada”.
A doma é violência. Humanos têm espírito de liberdade. Mesmo se fossem acostumados a viver em uma jaula, sua vontade de movimento livre teria apenas sido quebrada, mas isso não significa que eles seriam felizes no sistema de confinamento completo. Não o são. As prisões estão aí para evidenciar o quanto seu espírito é quebrado. Com os cavalos, dá-se o mesmo.
Segundo Monty Roberts, o maior estudioso da mente de equinos, em seu livro, Violência não é a resposta, contrariamos a natureza do cavalo, ao domá-lo: “... quando estabelecemos parceria com um cavalo estamos lhe pedindo para fazer coisas que ameaçam sua própria natureza e vão contra ela. Selar um cavalo, por exemplo, é provocar a sensação de que ele está sendo atacado por um predador e isto o leva a agir em autodefesa. Infligir dor, para cessar um comportamento que é uma resposta natural, simplesmente confirma os temores do cavalo.” [p. 28].
Infelizmente, Roberts usa seu conhecimento da natureza de equinos para realizar o que chama de conjunção, a aproximação do cavalo com o humano, com a finalidade de obter vantagens para o humano, oferecendo alguma compensação para o animal.
Entretanto, no regime escravocrata, também o senhor oferecia “compensações” para os escravos, pois, uma vez sequestrados de seu ambiente natural e social, os escravos não tinham onde obter alimentos e abrigo a não ser justamente na casa senhorial. Os que tentavam prover-se longe dela eram perseguidos e mortos. Poucos escapavam e sobreviviam nos quilombos.
Os cavalos escravizados não têm seus quilombos. Sua alforria depende inteiramente de nós, que temos a sensibilidade para estudar sua mente e compreender sua agonia. Se os cavalos continuarem a ser usados por aqueles que se consideram seus donos e por todas as pessoas que encontram benefícios em explorar sua força natural, eles jamais deixarão de ser explorados e escravizados, porque os humanos não se colocam no lugar deles, não se imaginam nunca puxando uma carga superior ao próprio peso, sob sol ou chuva, frio ou calor, por toda uma vida.
Os humanos não olham para as feridas no corpo do cavalo que puxa sua charrete. Não sabem sequer se aquele animal já ganhou comida e água. Não perguntam, ao subir na charrete, em que horário começou a árdua tarefa para o animal. Não querem nem saber se o animal poderá deitar-se para descansar quando for desatrelado da charrete e libertado do peso dos arreios e da tortura dos freios na boca. Não sabem. Não querem saber. Mas essa indiferença custa a vida para o animal.
O preço do prazer de passear em veículos puxados por animais é pago inteiramente pelo animal escravizado. E o dinheiro que dão ao boleeiro é gorjeta que o compensa pela tarefa de escravizar e torturar o animal. Os brancos contratavam um capataz para açoitar os escravos nas lavouras, para que trabalhassem mais e mais. Os turistas contratam um boleeiro para chicotear e maltratar o cavalo que os leva para cima e para baixo. Não há inocência nessa “tradição”. Nem do boleeiro, nem do passageiro. 

Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais(Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012); Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta vegana.