Por Dr. phil. Sônia T. Felipe, no site Olhar Animal
Sabemos, há milênios, da existência de sensibilidade
consciente em todos os animais, algo que acaba de ser confirmado pela
Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Humanos e Animais, proclamada em
7 de julho de 2012, na Inglaterra. Sabemos que eles têm inteligência, memória e
raciocínio. Os filósofos greco-romanos (Ovídio, Sêneca, Plutarco e Porfírio),
assim como Aristóteles, reconheciam que um nível não desprezível de
racionalidade era próprio dos animais, não apenas dos humanos.
Mesmo assim, por conta da teoria do filósofo francês René Descartes (1596-1650), de que não haveria consciência em animais não-humanos, porque eles não possuiriam uma linguagem, passamos os últimos 400 anos fazendo tudo o que quisemos contra os animais, escravizando-os, explorando seus corpos e experimentando neles todos os venenos inventados ou descobertos pela ciência química.
E gabamo-nos de que os animais foram criados por Deus para
nosso serviço, porque não teriam nossa inteligência. Não foram. Se o foram,
então também devemos ser escravizados, pelos mais fortes ou mais astutos,
porque somos igualmente animais, muitas vezes com pouca inteligência, comparada
à poderosa inteligência que a tudo escraviza e assombra.
Por conta da inocência de algumas espécies animais, do
prazer de conviver com os humanos, nós as domesticamos. Galinhas, porcas,
ovelhas, cabras, vacas, éguas e tantas outras fêmeas foram seduzidas pelo
calor, abrigo, alimento e companhia de humanos nos últimos dez mil anos.
Com o passar do tempo, os humanos construíram formas de
deter os animais junto a si, para os usar como podiam, e podem cada vez mais, e
tirar deles: força de tração, carnes, peles, couro, lã, leite, ovos, remédio e
diversão.
Nada escapa à lógica que ordena extrair o máximo de vantagem
de qualquer criatura vulnerável, pois os animais são considerados objetos dos
quais os humanos podem tomar posse, vender como mercadorias, explorar como
escravos e matar.
Os cavalos não são exceção. Nem os usados para atrair
turistas, nem os usados para puxar cargas de resíduos sólidos recicláveis pelas
cidades. Condenados à prisão perpétua e aos trabalhos forçados, longe dos
campos nos quais selvagemente galoparam por milhares de anos de vida livre,
hoje existem como figuras tristes na paisagem urbana, maltratados, famintos,
sedentos, cheios de cicatrizes e feridas causadas pelo uso do aparato de ferro
e cangas atrelados a seus corpos para que puxem carroças carregadas de humanos
que bem poderiam mover-se por suas próprias pernas, levando seus corpos a
passearem por onde quisessem, sem precisar maltratar nenhum animal. Mas, não.
Os prospectos turísticos da cidade incitam os turistas a
usarem o serviço do equino escravizado, como se isso fosse a coisa mais bela
que uma cidade pudesse oferecer aos estranhos que a visitam. E os estranhos,
seguindo a in-consciência dos nativos, usam o trabalho escravo dos equinos, sem
dó nem piedade. Em sua mente, a palavra cavalo é sinônimo de força de tração,
força de deslocamento ou meio de transporte.
Ninguém pensa de si mesmo que, se tem músculos fortes, então
isso quer dizer que nasceu para ser escravizado e puxar cargas alheias. Ninguém
pensa que tem músculos fortes para carregar pesos que excedam uma vez e meia o
próprio. Ninguém pensa isso de si. E quem pensa faz um contrato de prestação
desse serviço.
Mas todo mundo que usa charretes puxadas por cavalos, em
qualquer cidade do mundo, em qualquer país, acha natural andar de charrete como
se fosse da natureza equina puxar charretes. Tão natural que chegam a abarrotar
o veículo com sete pessoas, num total de uns 600 kg, somando-se o da carroça e o
das pessoas, quando o peso do cavalo pode não passar ou nem chegar aos 500 kg.
Ninguém pensa nisso. Todo mundo sobe na carroça (nome chique mesmo é charrete),
paga ao boleeiro, não paga ao cavalo nem em alimento, nem em água, não paga
hora extra, nem décimo terceiro salário, nem descanso semanal, nem férias.
E o cavalo trabalha todos os dias, a vida toda. Até cair
morto, exaurido, ou doente, quando então ninguém mais o vê, e fica sob a tutela
daqueles que o exploraram e exauriram a vida toda, o que é sinal de que não
receberá cuidados devidos na doença ou na velhice.
Ao subir nas charretes, nenhuma turista examina atentamente
o corpo do animal, seu peso, seu olhar, suas feridas ou cicatrizes de antigas
feridas. Ninguém se interessa pelo animal cuja força de tração o puxará cidade
acima e abaixo. Os humanos, seguindo a indiferença do boleeiro, do “dono do
cavalo”, sobem na charrete e se deixam levar pelo animal, exatamente como há
menos de duzentos anos faziam, subindo em liteiras levadas morro acima e abaixo,
sob sol forte, seca, vento cortante ou chuva fria, pela força escravizada de
homens negros.
Mas esse cavalo puxando charretes é um animal dotado de
sensibilidade e consciência de tudo o que fazem ao corpo dele, de tudo o que
fazem a ele. Esses cavalos escravizados, como todos os outros animais, são
animais dorentes e sofrentes (termos criados por Richard D. Ryder em 1990 para
designar a condição dos animais sob o jugo humano e não deixar que a ética
perca seu foco).
Tudo o que se faz ao corpo deles, das trelas atadas
firmemente com argolas de ferro, do freio atravessado em sua boca, das chinchas
que o prendem às hastes da charrete, dos antolhos que os impedem de observar o
ambiente para poderem mover-se em segurança, ao chicote com o qual são
açoitados para atenderem aos comandos do boleeiro, tudo é fonte de agonia para
o animal. Acostumado? Sim. Mas o costume de ser açoitado e amarrado não tira do
cérebro do animal, nem do humano escravizado, a sensação dolorosa de privação
de liberdade, ou a das inflamações causadas pela brutalidade do homem que o
força a puxar a charrete.
Conforme o afirma o médico britânico, Dr. John Webster
(Understanding the Dairy Cow), estudioso da dor em animais não-humanos, quanto
mais tempo uma dor é infligida a um animal, maior a sensibilidade a ela. Se
você tem uma ferida e sobre ela amarram uma corda para lhe fazer puxar uma
caixa muito pesada, mais pesada do que seu próprio corpo, essa ferida lhe
causará mais dor ainda. Se isso se repetir, a dor ficará cada vez mais intensa.
Mas os cavalos não reagem à dor! Sim, há espécies que não
expressam a dor, porque na natureza, se o fizerem serão alvo dos predadores.
Ah! Mas o cavalo não relincha de dor! Não mesmo? Mas isso não quer dizer que
ele não a sinta. O que quer dizer é que ele sente duas vezes o que está
acontecendo com ele: a dor do ferimento e o pavor de virar alvo de um predador,
por estar ferido, caso relinche. Bovinos também reagem assim à dor.
Os cavalos não usam palavras. Nenhum outro animal que não o
humano usa palavras. Isso não quer dizer que eles não tenham linguagem. Eles a
têm. Sua linguagem é inteiramente corporal. Tudo o que estamos sentindo o
cavalo percebe por conta do modo como mantemos nosso corpo ou fazemos
movimentos em sua presença. Não precisamos falar com o cavalo para ele saber o
que queremos dele. Ele sabe, pelo modo como nos comportamos junto a ele. Ele
sabe, igualmente, de si. E, por natureza, não faz coisa alguma contrariando sua
própria vontade, pois essa é genuína.
Em estado natural, para ser um equino, basta aprender com
sua mãe como conduzir seu corpo no meio da manada, respeitando a hierarquia
natural que a põe no posto de alfa, enquanto a jovem ou o jovem precisam
aprender a ser aquilo para o qual nasceram. E a natureza, sim, tem um cavalo,
mas ela o fez para cavalgar livre pelos campos, por, pelo menos, umas 18 horas
por dia. Livres. Sem cargas para transportar. Seus músculos fortes estão ali
para impulsionar seus corpos no ar, sim, porque cavalos nasceram, também, para
“voar”. Quando galopam, voam pelos campos, crinas ao vento, fortes e velozes,
causando inveja aos humanos sem asas e com pouca musculatura de impulso.
A inteligência dos cavalos é tal que eles pensam antes de
tomarem qualquer decisão. Fazem muitas coisas no piloto automático, como também
o fazemos. Mas sempre que algo novo interfere em seus hábitos, o cavalo
raciocina até encontrar a forma mais segura de seguir adiante. Sua linguagem é
absolutamente corporal e única. Apenas equinos a usam, como apenas alguns
animais marinhos usam a bioluminescência para se comunicarem, e só eles a
compreendem, porque nós, humanos, do alto do que consideramos a maior
inteligência do planeta, somos tão rígidos em nossa linguagem que ficamos a
exigir que os animais a aprendam, mas não envidamos esforços para decifrar a
deles e nos comunicarmos com eles. Jane Goodall fez isso com os chimpanzés e
Monty Roberts com os cavalos.
Segundo Roberts, cavalos, por natureza, não são animais de
luta, são animais de fuga. Duplo tormento, para eles, serem atados a artefatos
de guerra ou de cargas, pois qualquer ameaça será sentida como pânico, devido
ao fato de não poderem fugir dela. Sua musculatura está evoluída para a fuga,
não para o combate. Sua tendência natural, ao ser chicoteado, seria fugir. Mas,
atado às correias que o ligam à charrete, cada chicoteada é mais uma fonte de
sofrimento, porque está impedido de fugir. É o que ocorre na tortura de
humanos.
Não é fácil para qualquer animal estar no polo das presas. E
todo animal de fuga está. Humanos podem lutar ou fugir, de acordo com sua
consciência da possibilidade de vitória. Cavalos, sabiamente, por conta de sua
musculatura que favorece o impulso do galope, são evoluídos para fugir de toda
ameaça, e, fugindo, conseguiram sobreviver até serem encontrados pelos humanos e
terem sua vontade de fuga “domada”.
A doma é violência. Humanos têm espírito de liberdade. Mesmo
se fossem acostumados a viver em uma jaula, sua vontade de movimento livre
teria apenas sido quebrada, mas isso não significa que eles seriam felizes no
sistema de confinamento completo. Não o são. As prisões estão aí para
evidenciar o quanto seu espírito é quebrado. Com os cavalos, dá-se o mesmo.
Segundo Monty Roberts, o maior estudioso da mente de equinos, em seu livro, Violência não é a resposta, contrariamos a natureza do cavalo, ao domá-lo: “... quando estabelecemos parceria com um cavalo estamos lhe pedindo para fazer coisas que ameaçam sua própria natureza e vão contra ela. Selar um cavalo, por exemplo, é provocar a sensação de que ele está sendo atacado por um predador e isto o leva a agir em autodefesa. Infligir dor, para cessar um comportamento que é uma resposta natural, simplesmente confirma os temores do cavalo.” [p. 28].
Segundo Monty Roberts, o maior estudioso da mente de equinos, em seu livro, Violência não é a resposta, contrariamos a natureza do cavalo, ao domá-lo: “... quando estabelecemos parceria com um cavalo estamos lhe pedindo para fazer coisas que ameaçam sua própria natureza e vão contra ela. Selar um cavalo, por exemplo, é provocar a sensação de que ele está sendo atacado por um predador e isto o leva a agir em autodefesa. Infligir dor, para cessar um comportamento que é uma resposta natural, simplesmente confirma os temores do cavalo.” [p. 28].
Infelizmente, Roberts usa seu conhecimento da natureza de
equinos para realizar o que chama de conjunção, a aproximação do cavalo com o
humano, com a finalidade de obter vantagens para o humano, oferecendo alguma
compensação para o animal.
Entretanto, no regime escravocrata, também o senhor oferecia
“compensações” para os escravos, pois, uma vez sequestrados de seu ambiente
natural e social, os escravos não tinham onde obter alimentos e abrigo a não
ser justamente na casa senhorial. Os que tentavam prover-se longe dela eram
perseguidos e mortos. Poucos escapavam e sobreviviam nos quilombos.
Os cavalos escravizados não têm seus quilombos. Sua alforria
depende inteiramente de nós, que temos a sensibilidade para estudar sua mente e
compreender sua agonia. Se os cavalos continuarem a ser usados por aqueles que
se consideram seus donos e por todas as pessoas que encontram benefícios em
explorar sua força natural, eles jamais deixarão de ser explorados e
escravizados, porque os humanos não se colocam no lugar deles, não se imaginam
nunca puxando uma carga superior ao próprio peso, sob sol ou chuva, frio ou
calor, por toda uma vida.
Os humanos não olham para as feridas no corpo do cavalo que
puxa sua charrete. Não sabem sequer se aquele animal já ganhou comida e água.
Não perguntam, ao subir na charrete, em que horário começou a árdua tarefa para
o animal. Não querem nem saber se o animal poderá deitar-se para descansar
quando for desatrelado da charrete e libertado do peso dos arreios e da tortura
dos freios na boca. Não sabem. Não querem saber. Mas essa indiferença custa a
vida para o animal.
O preço do prazer de passear em veículos puxados por animais
é pago inteiramente pelo animal escravizado. E o dinheiro que dão ao boleeiro é
gorjeta que o compensa pela tarefa de escravizar e torturar o animal. Os
brancos contratavam um capataz para açoitar os escravos nas lavouras, para que
trabalhassem mais e mais. Os turistas contratam um boleeiro para chicotear e
maltratar o cavalo que os leva para cima e para baixo. Não há inocência nessa
“tradição”. Nem do boleeiro, nem do passageiro.
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia
Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro
de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética
- Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma
questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos
animais(Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos
abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima,
2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012);
Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma
questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão
abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da
vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento
animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas
e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes,
2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da
ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal
(www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@
(Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas
biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista,
contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014).
Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de
Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC,
1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta
vegana.