Diante da injustiça, a covardia se veste de silêncio (Julio Ortega) - frase do blog http://www.findelmaltratoanimal.blogspot.com/

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Vende-se um recanto do patrimônio do Brasil


No ano da celebração dos 250 anos do nascimento de José Bonifácio, sua casa na Ilha de Paquetá é posta à venda por R$ 1,4 milhão. Foi nesse pequeno canto, localizado na baía da Guanabara, que ele encontrou consolo após seis anos de exílio. Mais tarde, foi no casarão que amargou uma pena de prisão e passou os últimos anos de vida. Há uma proposta para transformar o imóvel em centro de pesquisas científicas. Contudo, a nove anos do bicentenário da Independência, um dos mais significativos símbolos da memória política do país pode perder-se para sempre


Myrian Luiz Alves, de Paquetá

Homem de consagrada carreira científica, José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu a 13 de junho de 1763 em Santos, no litoral paulista. De família abastada, seguiu para estudos na Europa, onde se aprofundou em filosofia, retórica e matemática, entre outras artes liberais clássicas. Lecionou e realizou pesquisas, em especial nas áreas de química e mineralogia, em Portugal e em outros países como Suécia e Noruega. Em seu retorno ao Brasil, registrou nos dois anos em que participou da política, entre 1821 e 1823, intensa reflexão sobre os desígnios da nação, sendo um dos principais responsáveis pela decisão de dom Pedro I proclamar a Independência, em 7 de setembro de 1822. Acabou entrando para nossa história com o honroso título de “Patriarca da Independência”. O que a história oficial pouco registra são seus muitos percalços políticos, entre tempos de exílio e de prisão. Raros são os que sabem que, nos períodos de desgraça, ele encontrou refúgio em um casarão na idílica ilha de Paquetá, na baía da Guanabara.

A história de Bonifácio no casarão de Paquetá guarda relação direta com as suas desventuras políticas e a conturbada relação com Pedro I. Eram tamanhas as divergências entre eles, em torno dos mais diferentes assuntos, que em novembro de 1823, apenas um ano após a Independência, Bonifácio foi preso e deportado para a França por ordem do monarca. Amargou quase seis anos de exílio. De volta ao país, em 1829, seu objetivo era largar de vez a política e mergulhar nos trabalhos científi cos. Foi assim que adquiriu, em regime de arrendamento, por 6 mil e 400 Réis anuais, uma chácara ladeada por árvores e voltada para o poente na antiga Praia da Guarda, nº 119, atual Praia José Bonifácio, em Paquetá. No terreno de pouco mais de 4 mil m2, com 250 metros de área construída, o patriarca abrigou mais de 6 mil livros e seu acervo de pesquisas, de destino hoje ignorado.

Nesse seu “retiro fi losófi co”, logo viveria outras convulsões, entre elas a decisão de aceitar a tutoria do menino Pedro, mais tarde dom Pedro II, a pedido do próprio imperador, que retornava a Portugal para defl agrar uma guerra civil com o irmão Miguel pelo trono lusitano. A tarefa de tutelar o herdeiro do trono brasileiro renderia a Bonifácio muitos inimigos e outras amarguras. Tantos que, logo depois de iniciada a tarefa, já em 1833, teria sua prisão de novo decretada, acusado de tramar o retorno de Pedro ao Brasil. Pelo menos foi em regime de prisão domiciliar. Contudo, ilhado da Corte em sua residência de Paquetá. Um destacamento, chefi ado por um capitão da Armada, hoje Marinha, hospedado na Chácara da Nação, situada ao lado direito desta casa, fi cou responsável por vigiá-lo dia e noite.

Com a liberdade restituída dois anos depois, em 1835, o naturalista e estadista, chamado de “homem do mundo” por integrantes da Maçonaria, da qual foi um dos principais expoentes, optou por continuar na ilha. Para receber melhor assistência médica, consentiu em mudar-se para a Praia do Ingá, em Niterói, apenas 12 dias antes de sua morte, ocorrida em 6 de abril de 1838.

Seis meses depois, em 6 de outubro, conforme registro do jornalista e escritor Vivaldo Coaracy na obra Paquetá, imagens de ontem e de hoje (Livraria José Olympio Editora, de 1964), o Jornal do Commercio anunciava: “Frederico Guilherme fará leilão, no dia de segunda-feira, em sua casa, Rua do Ouvidor, nº 84, de casas e chácaras sitas em Paquetá, pertencentes à herança do falecido Exmº Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, constando de uma moradia com portae duas janelas de frente, duas ditas no fundo e quatro ditas do lado, forrada e assoalhada até o prumo da varanda, dois torreões aos lados da frente da casa, também forrados e assoalhados, tendo seis janelas de caixilho. Cada um desses torreões, construídos há pouco tempo e em perfeito estado, tem 25 a 30 palmos de frente e pouco mais ou menos de fundo, sendo por esta forma quase quadrados. A chácara onde se acha a referida casa é edificada, com benfeitorias e arvoredos diversos, em terras arrendadas ao falecido coronel Eugênio José da Silva Teixeira, de que pagam por ano 6$400 de aforamento”.

TOMBAMENTO Assim, o casarão de Bonifácio escorreu da mão dos Andradas. Passaram-se exatos 175 anos. Chegou a ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mas sempre foi propriedade privada e nunca esteve sob os cuidados diretos do Estado. E eis que o casarão do Patriarca está de novo à venda. No atual anúncio, divulgado por corretores, informava-se, em outubro de 2013:

“Casa por R$ 1.400.000,00, em Paquetá, na Praia José Bonifácio, em que o Patriarca da Independência foi exilado, em 1834. Tombados pelo Patrimônio Histórico (somente o jardim e a fachada). Construção estilo colonial. São 8 quartos, ampla sala, copa, duas cozinhas e dois banheiros. Casa anexa/caseiro. Terreno com 4.000 m² aproximadamente com área possível de desmembramento, para finalidade comercial (bangalôs, apartamentos) ou uma grande área de lazer”.

As últimas linhas dessa propaganda não são verídicas, afirma o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no Rio de Janeiro, Ivo Barreto. Ele adverte que o “tombamento atua sobre esses espaços e toda alteração eventualmente prevista para o imóvel terá de ser previamente submetida ao Iphan”. Barreto ressalta que “os critérios a serem adotados para as modificações da casa diferem dos demais imóveis de Paquetá, justamente em função do tombamento”.

Embora o Iphan não determine a modalidade de utilização do bem, salvo as que comprometam ou coloquem em risco sua integridade, Ivo Barreto diz que “utilizações ligadas à cultura, educação e ciência são sempre bem-vindas, ainda mais num caso como este, no qual pode se estabelecer um link histórico entre o morador ilustre e a possível atividade que ali vier a ser desenvolvida”. Para ele, “utilizações com essas características também trazem, de certo modo, maior garantia de manutenção adequada ao bem tombado”.

Em relação à ilha de Paquetá, que, a 19 quilômetros do Paço Imperial, uma das áreas envolvidas em grande projeto de revitalização, sofre o distanciamento das sedes do poder público, Barreto lembra que equipamentos com o perfil da casa do Patriarca da Independência são fundamentais para agregar valor aos locais de sua implantação, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da população, que deles poderá se valer para o seu enriquecimento educativo e cultural.
“A memória de uma nação é uma das referências capazes de colaborar para a melhoria da qualidade de vida da sociedade, como um todo, com base nos acertos e erros do passado. É principalmente essa questão que justifica e direciona o trabalho que fazemos no Iphan. Na verdade, o que preservamos não é apenas pedra e cal, ou mesmo as manifestações imateriais ou os sítios arqueológicos. O que procuramos preservar é a base, o lastro cultural necessário para a projeção de um desenvolvimento pautado no reconhecimento de nossa cultura como algo cumulativo. Até por isso essa memória não tem preço”, conclui.

UTILIDADE PÚBLICA Inscrita nos Livros do Tombo, no Arquivo Central do Iphan, no Rio de Janeiro, a casa é patrimônio desde 13 de abril de 1938. Foi adquirida de um morador de Paquetá há oito décadas por tradicional família que a mantém em bom estado de conservação. Sendo particular, aos turistas e visitantes só é permitido observar uma placa da prefeitura exposta na calçada, com apresentação do histórico do local, e a vista do imóvel a partir do portão.

São essas as razões que levaram o professor Jim Skea, do Departamento de Física Teórica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a pensar que o modesto prédio poderia ser aproveitado como um centro de ciência. Radicado há 17 anos no Brasil, nascido na Escócia, Skea vive há três na ilha, a qual costuma percorrer fotografando cenários naturais e sua população. Ele acha que o Estado deve ter papel mais forte na preservação de seu passado. “Na ilha de Paquetá, onde moro, as casas preservadas frequentemente sofrem alterações sem qualquer fiscalização”, denuncia.

Apesar de vivermos numa época em que não faltam documentação e acesso à informação, Skea diz que o patrimônio físico é mais importante, “pois não há volta quando some da paisagem”.

O professor acredita que a instalação de um centro de estudos, de monitoração ambiental e científica na baía de Guanabara, na Casa de José Bonifácio, contribuiria para a recuperação da diversidade cultural e histórica da ilha, proporcionando-lhe um foco educacional, hoje inexistente. Esse local, segundo ele, incluiria, ainda, um centro de visitas, com exposições sobre a biologia marinha e terrestre, e sobre a geologia, destacando contribuições do próprio José Bonifácio nessa área. “Tanto a UERJ como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) teriam condições de assumir um projeto dessa envergadura, de ampla magnitude, embora singela”, diz.
O campus da Universidade Federal na Ilha do Fundão e a Ilha de Paquetá compartilham a característica de serem à beira da baía. Há uma proximidade geográfi ca que, com uma infraestrutura adequada, facilitaria o transporte de cientistas e alunos entre as duas ilhas. Já a Universidade Estadual tem o Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentado (CEADS) direcionado à pesquisa do meio ambiente, com um campus avançado na Ilha Grande. Como o presídio não era tombado, foi implodido, daí o centro ter sido instalado em Dois Rios, no prédio do destacamento da Polícia Militar, adaptado para se adequar a pesquisas em diversas áreas: oceanografi a, biologia e meio ambiente.

PÉROLA DA GUANABARA A pequena Ilha de Paquetá, de 1,2 Km² de área e 8 de perímetro, em formato de um oito, símbolo do infinito, é circundada por várias pedras e ilhas menores, como a de Brocoió, propriedade de veraneio do governo fluminense. Além da casa de José Bonifácio, uma das atrações históricas de Paquetá é o Solar D’El Rey, onde se hospedava dom João VI, apreciador das águas do poço de São Roque, padroeiro do local. A antiga fonte encontra-se fechada, como o solar, também patrimônio do Iphan e pelo qual os moradores lutam junto à prefeitura para transformar no primeiro centro cultural público da ilha, de 4 mil habitantes.



Os 250 anos do Patriarca
As homenagens aos 250 anos de nascimento de José Bonifácio, em 13 de junho, aconteceram no Pantheon dos Andradas, em Santos (SP), com as presenças do ministro da Defesa, Celso Amorim, e do governador paulista Geraldo Alckmin. Por iniciativa do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e do senador Inácio Arruda (PCdoB-CE), foi realizada sessão solene no Congresso Nacional, também em junho.

O documentário José Bonifácio, do diretor Francisco Manso, produzido para a Rádio e Televisão de Portugal (RTP), com o apoio do Parque Biológico de Gaia e da Ciência Viva e colaboração do Centro de Ecologia Aplicada Professor Baeta Neves, gravado em várias partes do mundo, incluindo a Ilha de Paquetá, já foi apresentado em Santos, São Paulo e Rio de Janeiro.

Fonte: Ipea