A maioria das discussões em torno dos experimentos feitos
com animais não humanos têm girado em torno da necessidade ou não necessidade
dos mesmos. De um lado, os que usam os animais defendem ser necessário o uso em
pelo menos alguns experimentos. Do outro, alguns ativistas respondem apontando
os riscos de se extrapolar dados de uma espécie para outra e outros problemas
técnicos com a experimentação. Eu acredito que o debate se centrar nessa
questão é um resultado infeliz, pois dá a entender que ambos os lados do debate
assumem a seguinte premissa: “se um determinado meio é necessário para se
chegar a um determinado fim, então esse fim e esse meio estão automaticamente
justificados”.
Quando percebemos esse ponto, vemos que essa premissa é
altamente questionável. Vamos supor que o objetivo de pelo menos alguns
experimentos seja o de curar doenças. Esse fim é justificável, até louvável.
Mas, segue daí que qualquer meio para se chegar a um fim louvável é
automaticamente justificado, desde que seja necessário para se chegar nesse
fim? A maioria de nós, incluindo os que experimentam em animais, não
concordaria com essa conclusão. Imagine que, para se curar uma determinada
doença fosse necessário assassinar e torturar algumas crianças. A maioria de
nós defenderia que é um erro fazer isso, e que os cientistas deveriam buscar
descobrir outro meio de procurar curar a doença. Assim sendo, a discussão não
deveria girar em torno da necessidade ou não da experimentação animal, já que
podem existir razões que mostrem que, mesmo sendo necessária em alguns casos,
ainda assim ela não se justifica (discuto melhor essas razões abaixo).
O que precisa ficar claro é que o ponto central do debate
não deve ser o que está sendo até agora. A questão central é que os animais que
são utilizados o são porque não pertencem à espécie humana. Quando se
desfavorece alguém por não pertencer a determinada espécie, o nome disso é
especismo (da mesma maneira que desfavorecer alguém que não pertence a
determinada raça chama-se racismo). Então, o ponto central deveria ser
perguntar por que se acredita que é correto fazer experimentos em animais não
humanos (ou usar para outros fins, como comer) mas não é correto usar seres
humanos. Para explorar melhor esse ponto, vou sugerir um experimento mental: suponha
que ficasse provado que experimentar em humanos é tecnicamente mais eficaz e,
além disso, necessário para se curar uma determinada doença. O que poderia
explicar o erro de se usar humanos nesse caso e que ao mesmo tempo explique que
não é um erro utilizar animais não humanos?
O que poderia justificar o especismo? Para a maioria, a
diferença parece óbvia: “como alguém não poderia perceber a diferença
moralmente relevante entre humanos e animais de outras espécies?”. Mas, e que
diferença seria essa? Não pode ser o mero fato de uns serem humanos e outros
não, porque isso não explica nada. Não pode ser o fato de humanos serem mais
racionais do que outros animais, porque nem todos os humanos são racionais
(recém nascidos, crianças muito pequenas, idosos senis, portadores de
determinadas doenças mentais, comatosos: existem animais não humanos muito mais
racionais do que estes humanos). Aliás, em se tratando de humanos não
racionais, ao invés de os utilizarmos como comida ou modelo de testes, damos
atenção primordial aos seus cuidados, já que são mais vulneráveis e mais
dependentes de nós. Então, apontar que os não humanos são menos racionais só
mostraria que os cuidados sobre eles deveriam ser muito maiores; tão grandes
quanto aquele que geralmente temos para com um bebê.
E quanto a apontar que na natureza o mais forte subjulga o
mais fraco; os animais comem uns aos outros; e cada animal favorece aos da sua
própria espécie? Teria poder para justificar o especismo? Não, porque isso
seria assumir a seguinte premissa: “se algo é natural, então é justificado”. O
problema com essa premissa aparece logo que perguntamos o que se quer dizer com
o termo “natural”. No sentido que é empregue nesse argumento, quer dizer que é
algo que acontece sem intervenção deliberada humana, ou que segue os processos
evolutivos inconscientes. Mas, então, por que isso seria relevante moralmente?
No que apontar que algo simplesmente acontece sem intervenção humana ou
planejamento racional seria relevante para nos dar razões para agir dessa ou
daquela forma? Não parece contraditório buscar razões para agir justamente em
processos que, desde Darwin, sabemos que não são processos racionais? É curioso
que alguns cientistas, muitos dos quais aceitam a teoria da evolução,
baseiem-se nessa premissa muito problemática. Uma coisa é “como as coisas
são?”; outra é “como as coisas deveriam ser?”. Dizer que algo é da maneira que
é não dá razão alguma para concluirmos que, então, esse algo é automaticamente
bom ou correto.
A falha em todas essas tentativas de se justificar o
especismo está em não se perceber que a principal razão para se respeitar seres
humanos não se dá por estes serem humanos, nem por serem racionais, e nem
porque na natureza cada animal privilegia os da sua espécie, e sim,
simplesmente porque seres humanos são capazes de sofrer e desfrutar. Essa razão
muito simples é o que melhor explica o dever de se respeitar alguém. Alguém
precisa de respeito porque valoriza estar em um determinado estado e não em
outro e é vulnerável. Para isso, é preciso ser senciente (capaz de sofrer e
desfrutar). Todo ser senciente prefere desfrutar de experiências mentais
positivas ao invés de negativas. Todos nós reconhecemos que sofrer e/ou ser
privado de desfrutar de algo bom, é ser prejudicado. Ser capaz de sofrimento/desfrute
é uma razão suficiente para se respeitar alguém, pois então esse alguém pode
ser prejudicado ou beneficiado de acordo com o que decidirmos. Para haver
possibilidade de alguém ser prejudicado, basta ser senciente, independentemente
de espécie, de grau de racionalidade e do que acontece na natureza. A mesma
razão que explica por que devemos respeitar humanos explica ao mesmo tempo
porque devemos respeitar qualquer ser capaz de sentir, independentemente de
espécie.
Outro resultado infeliz do debate é que por vezes centra-se
a discussão em se saber se houve ou não maus-tratos durante o experimento. O
que isso parece indicar é que, então, ambos os lados do debate estão a aceitar
a seguinte premissa: “se não houver maus-tratos durante um experimento, então,
ele é automaticamente justificado”. Essa premissa só faria sentido se sofrer
fosse a única maneira de se prejudicar alguém. Mas, existe pelo menos outra
maneira bem conhecida de se prejudicar alguém: assassiná-lo, quando ainda lhe
resta algo de bom a ser desfrutado.
Alguém poderia objetar, dizendo que é isso que explica a
diferença entre humanos e não humanos quanto ao erro em matar: os primeiros
fazem planos para o futuro e entendem o que é a morte; os segundos não. Essa
objeção tem dois erros. O primeiro erro, menor, é que existem humanos (bebês,
idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, etc.) que também não
entendem o que é a morte e também não fazem planos para o futuro. O segundo
erro, maior, é confundir “ser prejudicado” com “saber que será prejudicado”. A
morte, quando é um dano, é um dano não devido ao que ela faz estar presente,
mas devido ao que ela priva. Ela priva alguém de desfrutar sensações boas no
futuro. E isso é assim independentemente desse alguém saber o que é a morte,
ter feito planos para o futuro, ou sofrer antes da morte. Assim sendo, todos os
seres com possibilidade de desfrutarem algo de bom no futuro são danados ao
morrer. Então, não é tão importante discutir se houveram ou não maus-tratos
durante os experimentos, haja vista que existem fortes razões para se objetar
aos experimentos mesmo quando não existem maus-tratos, já que os animais, de
qualquer maneira, são mortos depois.
Por fim, um comentário sobre outro argumento muito freqüente
nos debates. Os defensores da experimentação acusam os defensores dos animais
de hipocrisia por se beneficiarem da exploração animal (usarem remédios, comer
comida de origem animal, andar de ônibus, por exemplo). Disso, eles concluem
que, então, a exploração animal está justificada. O problema é que essa
conclusão não seguiria da premissa nem que a premissa fosse verdadeira. É
verdade, a acusação de hipocrisia poderia ser verdadeira em alguns casos (por
exemplo, parar de comer comida de origem animal é algo que se pode fazer facilmente).
Contudo, outras coisas são muito mais difíceis de se fazer, haja vista que
absolutamente quase tudo em nossa sociedade é feito à base de exploração
animal.
Mas, a questão não é essa. Mesmo que todas as acusações de
hipocrisia fossem verdadeiras, será que segue daí que, então, a prática que o
suposto “hipócrita” está a criticar tem boas razões a seu favor? Obviamente que
não. Uma questão é “qual o caráter do interlocutor?”, outra é “qual a coisa
certa a se fazer?”. Imagine, por exemplo, que o tratamento de água fosse feito
a base de trabalho infantil. Ninguém pode deixar de tomar água. Será que segue
daí que então não existem razões contra o trabalho infantil e que alguém deve
ser proibido de objetá-lo? E, supondo que o trabalho infantil fosse utilizado
em um produto não necessário, como café. Supondo que quem estivesse a protestar
tomasse café e que a acusação de hipocrisia fizesse sentido. Segue daí que não
existem boas razões para se abolir o trabalho infantil? Obviamente que não. O
interlocutor, no nosso exemplo fictício, apesar de hipócrita, estaria a fazer a
coisa certa ao criticar a exploração. Acusar os defensores dos animais de
hipocrisia com vistas a concluir que a experimentação animal se justifica é
nada mais do que um caso da famosa falácia ad hominem. Aliás, parece que o
fato de quase tudo em nossa sociedade ser feito à base de exploração animal é
mais uma razão para aboli-la, pois então mostra que sofrimento e morte estão
sendo impostos a um número gigante de seres sencientes.
Essas questões deveriam ser o ponto central do debate. As
razões acima são as razões mais básicas para se rejeitar o especismo, e, com
ele todas as práticas exploratórias sobre os não humanos, incluindo a
experimentação animal. É a partir daí que o debate deveria se desenvolver. E é
por não se estar discutindo os argumentos principais e se estar a perder tempo
com argumentos que já assumem de antemão que o especismo está justificado que
nosso entendimento das questões éticas que envolvem animais não humanos está, infelizmente,
em um nível dos mais rasos.
Luciano Carlos Cunha - lucianoshred@gmail.com
Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciado em Educação Artística com
habilitação em música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC),
colaborador da revista eletrônica Pensata Animal, colunista do site ANDA e autor do
blog Desafiando
o Especismo.
Link para C. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3030914980692075