A primeira vez que falei com a Paula foi por telefone e poucos meses após retornar de Cuba. Estava encantada com a Ilha, com o povo cubano, com Fidel e com Che Guevara.
Surgiu uma agenda em homenagem aos 30 anos sem Che Guevara.
A Paula, ainda somente por telefone, indicou poesias sobre o Che.
Então a conheci pessoalmente. Passamos a ter encontros semanalmente sobre o “Concurso em homenagem ao Che”, com Clóvis Moura e Antonia Rangel.
Foram mais de 10 anos com poucos encontros, mas com ligações quase diárias.
No golpe contra Hugo Chávez, em 11 de abril de 2002, ainda com a internet sem banda larga, acompanhávamos minuto a minuto a rádio Relógio cubana e a CNN em espanhol, torcendo pelo retorno de Chávez.
A partir daí as ligações passaram a ser mesmo diárias, principalmente com as bobagens que a Heloísa Helena tentou vomitar em 2005. A Paula era contra golpes. Sabia como ninguém, alertar detalhadamente as entrelinhas quando alguma coisa estava descrita nos cinco jornais que lia diariamente ou em outras publicações que comprava da banca predileta perto de sua casa.
Que saudade de seu “iiiiiiiii”: “este não conta mais”; “este virou político profissional”; “por que a mulher dele não fica quieta?”; “tenha dó”...
Paula Beiguelman: militante da história
Por Paulo Cannabrava Filho
A primeira vez que ouvi falar em Paula Beiguelman foi através de citações feitas por Darcy Ribeiro que se dizia um grande admirador do pensamento e obra da professora Paula. Depois, só no inicio da década de 1980, tive o privilegio de conhecê-la pessoalmente. Quando recomendo aos jovens leituras que considero indispensáveis para se entender o Brasil, os primeiros autores que cito são precisamente Darcy e Paula. Depois cito aqueles que me recomendavam seja na escola, seja nos grupos de estudo e que também considero leituras indispensáveis: Holanda, Faoro, Freire, Caio Prado, Celso Furtado, etc.
Darcy revolucionou a antropologia. Fez com que nos entendêssemos a nós próprios como brasileiros sem sentir vergonha disso. Ao contrário, injetou-nos o entusiasmo de ser criadores de uma nova civilização. O Brasil da esperança, do futuro, é isso, é o que estamos criando. Com esse mesmo olhar crítico à realidade, com essa mesma coragem de desmontar os mitos, Paula nos mostrou o caminho para o repensar da história, a história vista pelos protagonistas, sem a distorção intencional dos que se utilizam também da história como instrumento de dominação. O que vejo de identificação no pensamento e obra de Darcy e Paula é que ambos mergulharam na realidade crua a dura da nossa brasilidade territorial e humana. Olharam criticamente, formularam suas teorias e protagonizaram uma ação transformadora. Convencida sempre de que “a práxis é teoria dentro da prática” Paula ia às fontes originais do fazimento da política e ela mesma se vestia de militante, construindo partido, ajudando na formação de quadros, cerrando filas nas lutas nacionalistas e emancipadoras.
Convivi com Paula na década de 1980 quando lutávamos pelas diretas, pela constituinte e tentávamos reconstruir o trabalhismo. O trabalhismo entendido como extensão das lutas iniciadas pelos que pensaram a revolução liberal e libertária, que passando pelas lutas anti-escravagista e pela independência, chegaram à Revolução de 1930 e foram massacrados em 1964, quando se construía esse novo Brasil sonhado pelos nossos próceres.
Paula bebeu brasilidade em Lima Barreto, se encantou, e foi das primeiras a exaltar seu valor histórico e literário no ambiente universitário. Com esse sentimento participou das lutas nacionalistas de nosso povo, como a Campanha que resultou na criação da Petrobras. Mais tarde, com Euzébio Rocha e Toledo Machado Paula de novo estava levantando essas e outras bandeiras, como a da Anistia, das Diretas Já. Por ela fomos mobilizados no movimento de reconstrução da Frente Parlamentar Nacionalista, na reedição do Fórum Sindical de Debates que serviu de laboratório para uma proposta de Constituição para o Brasil. Com Toledo Machado e Paula também participamos da fundação do Sindicato dos Escritores do Estado de São Paulo.
Paula foi cassada em 1969 e aposentada compulsoriamente,o mesmo que dizer que foi expulsa da USP pelos vassalos da ditadura civil-militar implantada em 1964. Junto com Paula foram expulsos Florestan Fernandes, Octavio Ianni, José Artur Gianotti, e cientistas como Mario Schemberg, Leite Lopes, entre centenas. Naquele tempo era comum os carreiristas dedurarem e pedirem a crucificação dos talentosos para ocupar seus lugares já que não chegariam lá por méritos próprios. Ao final de sua carreira Paula se limitava a ajudar graduados na pós.
Titular da cadeira de Ciência Política, sua tese de doutorado em política foi sobre Teoria e Ação no Pensamento Abolicionista. Conquistou a livre docência no departamento de ciências sociais com a tese Contribuição à teoria da organização política brasileira e, mais tarde, nova livre docência com a tese sobre A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. Em 1981 publicou pela Brasiliense A crise do Escravismo e a grande imigração, que teve nova edição em 2003, pela Terceira Margem. Em 1968 publicaria pela Pioneira A formação do povo no complexo cafeeiro.
Ninguém melhor que Paula desmontou o mito do abolicionismo como dádiva da corte. A tardia abolição e os atos imperiais que a antecederam, decorrem mais de um decreto inglês (o Bill Aberden/1845) do que da vontade dos conservadores e da própria família imperial. Mas, Paula vai fundo na analise das crises das monoculturas cíclicas, do anacronismo escravagista em contradição com a necessidade de inserção no nascente capitalismo em expansão. Tudo isso visto no contexto das decadentes culturas ibero-européias empenhadas em formar “uma mesma América sem pensamento próprio, sem projeto de nação, em que as massas devem estar sufocadas na ignorância necessária para preservação do statu quo”.
Para Darcy, a crise na educação no Brasil não é crise, é projeto. Paula reforça essa idéia citando Nabuco que identificava “a pobreza de valores espirituais na sociedade brasileira como inerente à ordem estabelecida” ... Assim, “o analfabetismo generalizado, bem como a organização deficiente e o baixo rendimento da educação escolar, passam a interpretar-se em termos do papel que compete à “ignorância de todos no preservar o statu quo”
O abolicionismo oficial brasileiro, como o europeu, diz Paula visa tão somente “o status jurídico do escravo e não o sistema econômico em que a escravidão se insere e que lhe pode sobreviver” (pg 176).
E também vai fundo na analise das idéias. De um lado, os conservadores conduzindo a ocupação predatória do território com as bênçãos da corte. A eugenia discriminatória já estava presente entre os que tinham os pés aqui e os cofres na Europa. Muito antes de Mussolini, Goebles e Hitler, Pereira Barreto, o cientista de nossa elite, publicava no Estadão da época (A Província de SP) a apologia à superioridade da raça ariana oposta aos negros e índios. Diz Paula, “o cientista Pereira Barreto combaterá o movimento abolicionista apelando para os preconceitos sobre a ´raça inferior´, e opondo ao mesmo tempo, ao `raciocínio absoluto´ que conduzia ao abolicionismo, a compreensão das condições empírico-concretas em que a escravidão se tornava necessária e que pretensamente a justificariam.
Do outro lado, o pensamento liberal e revolucionário que começavam a conformar um pensar brasileiro, não só expresso e impresso, mas conduzindo lutas populares por todos os rincões do país.
Paula desmascara o caráter racista da elite conservadora. Ela mesma foi vítima desse conservadorismo retrógrado e preconceituoso, machistas inconformados diante de uma mulher que brilha por seu talento, sua inteligência, sua capacidade de ensinar aprendendo, pesquisadora incansável e sua coragem.
Fruto dessa sua imersão em nossos próceres Paula publica em 1981, pela Brasiliense, Por que Lima Barreto e, em 1999, pela Perspectiva, Joaquim Nabuco. Em toda sua obra se vê o cuidado em resgatar a importância do pensamento e do fazer dos que estiveram na vanguarda dos movimentos revolucionários dos séculos XXVIII, XXIX e XX.
Em Campinas, reduto dos mais reacionários conservadores, é também onde Antonio Bento vai subverter a ordem escravagista organizando a fuga dos escravos e liderando os Caifazes. Quando os liberais se somam, o movimento abolicionista se torna irresistível. A corte cede, mas não muda o statu quo. Aos milhões de brasileiros livres, negros, índios, negribrancoindio, idionegribranco, não é dado o direito de ser brasileiro. Continua a ocupação predatória com base no latifúndio de monocultura e exploração vil da mão-de-obra.
Historicamente os conservadores impuseram esse modelo com base no latifúndio, impedindo a formação camponesa. Como esse modelo não gera emprego suficiente é preciso apropriar-se do Estado para empregar a familiares e áulicos. Paula, seguramente, não se referia ao clã Sarney paradigma desse comportamento que persiste nas elites ainda hoje, evidenciando a necessidade crucial de uma reforma política que coloque o país na atualidade.
A economia agrária com base camponesa, pleiteada pelos nossos próceres, somente será adotada nas colônias formadas por imigrantes europeus no sul e sudeste a partir do segundo lustro do século XXIX.
Duas obras completam esse ciclo: A formação do povo no complexo cafeeiro, editado pela Pioneira em 1978, que lhe valeu o Prêmio Visconde de Cairu; e A crise do escravismo e a grande imigração, pela Brasiliense em 1981.
Quando a economia começa a migrar da base agrária para a industrial, implementando a população urbana e a imigração européia, Paula se concentra no desenvolvimento desses novos estamentos social e urbano – o capitalista industrial e o operário fabril.
Paula nos mostra que muda o cenário, mas não muda o comportamento da classe dominante. O capital que vem da lavoura vem com a mesma ideologia predadora e escravagista. O trabalhador tratado como carvão para ser queimado nas fornalhas, salários vis, exploração de menores, mulheres e homens sem complacência. E no contexto dessas novas relações sociais os trabalhadores se organizam e lutam.
Mostra em suas obras a constância e evolução das contradições entre capital e trabalho. De um lado, os trabalhadores se organizando e conquistando através de ingentes lutas, num mercado totalmente desregulado, os seus direitos: jornada de oito horas, férias, salários melhores, enfim, até chegar ao que foi consagrado na CLT na década de 1940. Fica claro que todos esses direitos trabalhistas, regulados por leis, foram conquistas das lutas dos trabalhadores.
De outro lado, a pressão constante por desregulamentação. Pressões que se ampliam e conquistam espaço na globalização, com os trabalhadores divididos e anestesiados pela sociedade do consumo.
Essa luta Paula não cessaria de acompanhar até seus últimos dias. Essa história interpretada está em parte nos “Companheiros de São Paulo”, editado pela Símbolo em 1977, teve uma reedição revista em 1981, pela Global e uma terceira, revista e ampliada em 2002, “Companheiros de São Paulo - Ontem e Hoje” editada pela Cortez. Nesta, Paula acrescentou o confronto dos operários com as transnacionais da indústria automotiva, notadamente com a Ford, no início dos nos 1990.
Apreendemos com Paula que juntamente com a classe operária nasce no nosso meio, nas duas primeiras décadas do século XX, a imprensa alternativa, isto é, a imprensa popular, feita por trabalhadores para defender os interesses dos trabalhadores. Como esses primeiros trabalhadores industriais urbanos eram imigrantes, esses jornais eram muitas vezes bilíngües e traziam no nome a origem de quem os editava: Fanfulla, Avanti, La Bataglia, Piccolo, Diario Español, La Propaganda Libertaria.Esses jornais, que circulavam juntamente com O Amigo do Povo, A Plateia, Germinal, Combate, Capital, A Nação, A Plebe, denunciavam as péssimas condições de trabalho, incitavam à organização e cobriam as greve.
Do outro lado, a defender o patronato, jornais de propriedade de famílias oligarcas como o Correio Paulistano. O Estado de São Paulo, Diário Popular, Cidade de Santos. A partir da segunda metade do século passado, ainda circulavam alguns desses jornais alternativos que logo desapareceriam. Permaneceriam os jornais dos comunistas, como Tribuna Popular, Notícias de Hoje, Imprensa Popular, Terra Livre, entre outros. No vazio da imprensa realmente popular, vão circular, a partir de 1955, as várias edições regionais do jornal Última Hora, que dará cobertura ao movimento sindical, e jornais como A Hora, de apelo popular, e mais recentemente, A Hora do Povo que teve o privilégio de ter Paula como colaboradora. Os temas relacionados com o movimento dos trabalhadores pouco a pouco vão se limitar à imprensa sindical.
Paula participou de todos os movimentos nacionalistas pois entendia que passa por uma compreensão do ser nacional a construção de um projeto de nação, de um estado soberano. Nessa linha, ela e Toledo Machado são nossos guias. Talvez inspirada em Toledo deixou-nos textos como Pela recuperação de uma proposta nacional – Breve história da energia elétrica no Brasil, publicado pela Inep em 1986 e, A prática nacionalista – Dever intrínseco das Forças Armadas Nacionais, ou, A causa nacional: o futuro da nação brasileira, no Instituto de Projetos e Pesquisas Sociais e Tecnológicas, publicado pelo Senac em 1998, entre outras.
Historiadora, pesquisadora e, sobretudo militante das causas por um Brasil verdadeiro, pela redenção do povo brasileiro. Paula militante jamais se negou a estar na arena, a participar orientando e aprendendo. A mais justa homenagem a Paula é divulgar sua obra, é seguir seus passos, perseguir a realização de seus sonhos, a melhor das utopia para todos nós.
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