Dra. phil. Sônia T. Felipe
Resumo: Este artigo trata da questão da
discriminação contra os animais, da origem dessa discriminação na filosofia
antiga e do conceito especismo, criado por Richard D. Ryder no século XX para
designá-la, fazendo par com os já conhecidos, racismo e machismo.
Palavras-chave: especismo, especismo elitista,
especismo eletivo, antropocentrismo, Humphry Primatt, Richard D. Ryder
Discriminação moral da espécie
biológica de vida
Atentar
contra a dignidade de seres humanos por conta de sua constituição ou orientação
sexual é sexismo (heterossexismo, homofobia, machismo, misoginia, androginia).
Se a dignidade da pessoa é violada por conta da etnia, é racismo. Machismo,
sexismo e racismo são termos que se tornaram conhecidos nas últimas cinco
décadas.
Entretanto,
se a vida de um animal é tirada em experimentos químicos e bélicos, se sua
liberdade para viver de acordo com o éthos singular de sua espécie lhe é
subtraída pelo confinamento em aquários, zoológicos, circos, galpões,
gaiolas, baias, residências e correntes, se o espírito específico do animal é
eliminado pela doma ou domesticação, se o animal é escravizado para atender aos
interesses humanos, a exemplo das fêmeas bovinas usadas para extração do leite,
das galinhas usadas para produção de ovos, das porcas usadas para reprodução
dos porcos a serem abatidos, e em todos os casos nos quais os humanos tiram dos
animais as condições de vida dignas da espécie em questão, não se usa um termo
equivalente ao que designa o abuso contra o sexo, o gênero e a raça de um
humano. O termo adequado para designar a discriminação contra animais
não-humanos é especismo, pouco conhecido fora do movimento animalista.
Se não há
um conceito designando e delineando uma ação humana, não há reflexão crítica e
ética sobre ela. Sem ser designada, a ação não pode ser avaliada. Sem ponderar
seu valor, não se pode ter consciência do dano que pode causar a quem sofre
seus desdobramentos, seja humano, seja não-humano. A violência contra os
animais permaneceu por milênios sem referência conceitual alguma na história do
pensamento humano, da filosofia à ciência, do direito à arte.
No
banquete dos cegos (dos que não querem ver) ao redor do planeta, os resíduos da
violência contra os animais são servidos em todas as dietas animalizadas:
carnes, ovos, mel, leite e seus derivados; em quase todos os tipos de
vestimentas encontram-se resíduos animalizados: peles, couros, seda e lã; em
quase todos os medicamentos alopáticos e em muitos homeopáticos resíduos
animalizados entram na composição; em quase todas as formas de divertimento
humano (circos, cinemas, zoos, rodeios e similares, esportes e artes), a um
custo doloroso para os animais, o riso é evocado pela performance forçada de
atores não-humanos.
Praticamente
todos os itens do consumo humano são animalizados. Embora os resíduos tirados
do animal estejam ali, sua condição é a de referente ausente (absent
referent) (Adams, 1990:42-44), invisíveis ao olhar. O que lhes foi
infligido de dor, sofrimento e morte, para que fosse possível a extração do
butim, passa incólume pelo filtro moral tradicional.
Desde os
primórdios gregos, a taxonomia das diferentes espécies biológicas ensejou a
hierarquização do valor da vida. Ao catalogar as espécies, Aristóteles agrupa e
distingue os animais humanos e não-humanos em função de habilidades mentais e
da capacidade de movimentos autônomos, considerando inferiores os
vulneráveis à captura e à escravização.
Sem
exceção, a classificação trata de reunir indivíduos da mesma espécie, mas
desprezando exatamente a singularidade individual. Por ser universal, o
conceito enfatiza um traço do objeto, possível de ser encontrado em todos os
objetos da mesma classe. Ao padronizar (patronizar, patriarcalizar), o conceito
universal violenta o singular. Não obstante, é no singular que o éthos
de cada espécie se recorta sem jamais se repetir.
Segundo
Aristóteles, quanto mais habilidade um ser possui para mover-se e autoprover-se
no ambiente social e natural e quanto mais cercado está de seres que não
possuem seus traços específicos, mais poderá servir-se deles para atingir seus
fins e realizar seus propósitos.
Animais
humanos e não-humanos foram classificados por seu éthos biopsicológico,
por sua senciência ou aparente ausência dela. Distinções particulares ocorrem
em cada indivíduo, mas essas não interessam ao conceito de animal. O éthos é
a marca, o traço específico a partir do qual se pode excluir ou incluir o
indivíduo em determinada categoria e ter certas expectativas em relação ao seu
modo de interagir natural e socialmente.
O
conceito de humano, por exemplo, salienta este traço peculiar a uma determinada
espécie animal: a racionalidade. Ao enfatizar a racionalidade como
característica específica e exclusiva dos humanos, a filosofia velou sua
animalidade. Omitindo-se o óbvio, o fato de que se há racionalidade há
animalidade nessa mente, ainda que mentes configuradas em organismos diferentes
tenham configurações racionais também específicas, atribuem-se direitos
fundamentais a humanos, por exemplo, o direito à vida, à liberdade, à escolha
reprodutiva e assim por diante, escamoteando-se que tais direitos são
construções destinadas à proteção da vulnerabilidade animal de todos os
indivíduos humanos, passíveis de serem mortos, de serem sequestrados,
aprisionados, forçados à sexualidade infligida e assim por diante.
Ao eleger
a racionalidade como critério para se ter direitos, a filosofia exclui do
direito os animais dos quais se diz não possuírem racionalidade. Uma vez
excluídos dos direitos fundamentais, os animais não-humanos passam a ser objeto
de propriedade dos seres autoproclamados racionais. Temos aqui a fonte do
especismo que se projeta em todos os conceitos relativos aos animais
não-humanos nos mais de dois milênios de ética antropocêntrica.
Em Ética
a Nicômaco, Aristóteles reconhece que as plantas têm alma vegetativa,
um movimento destinado ao autoprovimento e à reprodução. No seu entender, elas
não têm alma desiderativa, peculiar ao animal, que provoca seu
deslocamento consciente em direção a algo que está em outro lugar ou em outro
tempo, algo desejado. Seres que desejam algo, além do que seu organismo e seu
ambiente natural e social lhes dispõem, e os animais de todas as espécies são
exemplo disso, são mais complexos em seu design ou expressão mental.
Essa diferença os singulariza, pois cada indivíduo é levado a mover-se a seu
próprio modo para poder atender ao seu desejo.
Por ser
obrigado a mover-se para autoprover-se o animal se revela vulnerável à morte, à
dor e à privação. A sensibilidade e a consciência são os meios dos quais o
animal dispõe para cercar-se de proteção contra o que pode destruí-lo. Nisso,
todos os animais são iguais, humanos e não-humanos. Animais, portanto, diferem
dos seres que nascem atrelados ou fixados ao ambiente, ao solo, às pedras, às
águas ou às plantas.
Animais
são seres que ao nascer são separados de um útero ou de um ovo, sua fonte de
provimento gestacional. Uma vez nascidos, é de um ambiente em movimento e
transformação que os animais têm que obter a satisfação de suas necessidades.
Seres
desejantes vivem sob o império do ânimo vegetativo e do ânimo
desiderativo. Para suprir ambas essas almas, nos animais forja-se a mente
senciente, pela qual todo indivíduo cria para si uma segunda natureza, sua
consciência peculiar do que o afeta, sem a qual não saberia orientar-se no
espaço e no tempo, nem sobreviveria ao próprio nascimento. Na prática, ser
animal é sinônimo de ser senciente, não importando a espécie à qual pertença o
indivíduo.
Plantas
não são condenadas ao destino trágico do nascer animal. Elas só nascem se o
solo dispõe dos nutrientes necessários ao seu desenvolvimento e florescimento.
Sem importar-se com a singularidade das plantas ou dos demais animais,
Aristóteles os classifica em função de sua peculiaridade e também de sua
utilidade para os humanos.
Segundo
sua concepção, cada tipo de vida está a serviço de outro, formando a tão
propalada cadeia da vida, que, na tradição ocidental, torna-se a cadeia da
morte infligida por interferência humana a todos os animais não-humanos. Nessa
cadeia, os humanos tomam assento no poder absoluto de destruição da
materialidade ou corporalidade de qualquer ser vivo das demais espécies.
A
justificativa para isso foi dada pela tradição filosófica especista elitista,
redesenhada na tradição católica: os animais, constituídos de capacidades
classificadas como mais ou menos valiosas, estão hierarquizados por natureza
para melhor disponibilizarem sua materialidade física aos interesses humanos.
Nesse sentido, a única espécie de vida dotada de valor inerente é a humana. Ter
nascido em qualquer outra espécie não assegura ao animal a liberdade de ter seu
corpo para si. Ele será cobiçado para virar alimento, peça de vestuário,
adereço, meio de diversão, instrumento de experimentos químicos e bélicos etc..
A Igreja
Católica, em seu Dicionário editado em 1884, no verbete “Os animais
inferiores”, assinado por W. E. Addis e T. Arnold, declara:
“[...] Devemos lembrar que eles
são nossos escravos, não nossos iguais e, por essa razão, é correto manter tais
práticas, tais quais as da caça e pesca, condução e equitação, simplesmente
para demonstrar de modo prático o domínio humano sobre as bestas [...]. Tem-se
visto que a defesa dos direitos das bestas está associada com a fase mais
inferior da moralidade e que a bondade para com as bestas é obra meramente
supererrogatória.” (Apud Felipe, 2007b:274, nota469).
Enfrentando
a tradição escolástica hegemônica na igreja católica, o teólogo britânico
Andrew Linzey adverte:
“[...] Pode ser verdade que
certos moralistas no campo animal tenderam a excluir a vida não-animal do
âmbito do valor. Todavia, também é verdade que não há, na saga da criação, uma
definição clara do status de muitas formas de vida. Não nos foi dito o valor
específico das plantas, dos pássaros, dos peixes e dos mamíferos.” (Apud
Felipe, 2007b:234).
A
discriminação dos seres vivos por conta de suas peculiaridades específicas, ou
especismo, não se resume em classificá-los em seres com alma vegetativa ou com
alma desiderativa (plantas e animais não-humanos). Mais complexa do que pode
parecer à primeira vista, a classificação de Aristóteles se refina, seguindo
para outros tipos de movimento, possíveis somente a seres dotados de um tipo de
intelecto que alcança uma espécie de soberania naqueles agraciados com a
capacidade de deliberar, uma habilidade complexa presente na mente de animais
dotados de liberdade em suas escolhas, espécie na qual nascem os humanos. Nessa
concepção está fundado o especismo elitista, a forma de obter vantagens
explorando e matando animais de quaisquer espécies, a pretexto de que eles não
são livres ou de que não fazem uso da razão, devendo, por isso, servir aos
humanos.
Seguindo
tal lógica, a filosofia, a ética, o direito, a ciência e as tradições
religiosas destinam aos seres animados não dotados da racionalidade
deliberativa um lugar secundário na classificação dos animais. Foi desse modo,
universalizando a racionalidade para designar todos os indivíduos da espécie
humana, enquanto garante que nenhum indivíduo de qualquer outra espécie possa
ser introduzido nesse âmbito privilegiado, que a filosofia tradicional se
afirmou antropocêntrica, hierárquica e especista elitista. Racismo, machismo e
especismo são três formas de exclusão universalista, na qual todos os que não
se enquadram no padrão do patrão ou patriarca são usados como meros meios
a serviço dos fins que o conceito universal impõe a tudo.
Para
classificar os seres racionais, distinguindo-os dos não-racionais, a tradição
moral não leva em conta a singularidade específica nem individual do animal. O
que conta é possuir uma determinada capacidade da qual seja dotada sua espécie,
impossível de ser reconhecida nos mesmos moldes em indivíduos de outras
espécies. Desse modo se garante a exclusão. Toda generalização exclui. Toda
inclusão cerca, molda e emoldura. Se um indivíduo é humano, mas não consegue
formular um raciocínio, é discriminado. Se um indivíduo é animal, mas não
consegue escapar dos ardis de outros e torna-se presa fácil, é discriminado.
Para proteger humanos incapazes do uso da razão, inventamos os direitos
humanos. Todavia, ainda não concedemos direitos fundamentais para proteger os
animais incapazes de escaparem dos ardis humanos.
Os
animais humanos foram classificados como superiores a todos os demais, uma forma
de discriminação especista elitista. O critério para essa hierarquização foi a
capacidade da percepção intelectiva, de manter a memória dessas impressões,
ressignificando-as, de usar o arquivo para orientar-se nos movimentos
presentes, habilidades não reconhecidas pelos humanos em outros animais.
Até a Declaração
de Cambridge sobre a Consciência Animal e Humana, proclamada em julho de
2012, a sensibilidade autoconsciente era considerada pelos neurocientistas de
todas as especialidades como específica da mente humana. Ela possibilita
distinguir o benéfico do maléfico e escolher o que é bom para si e para os que
dependem de si, evitando o que faz mal ou prejudica. Animais não-humanos têm a
capacidade de fazer tais escolhas, portanto, podem, a seu próprio modo
específico, deliberar, o que os coloca no mesmo patamar dos direitos
fundamentais, gozados pelos humanos, às escolhas destinadas a assegurar o bem
próprio.
Isso
habilita a espécie humana a agir moralmente. Colocadas no centro ou como fim
último da moralidade, as habilidades de distinguir o bom, do ruim, e o que faz
mal aos outros, do que os beneficia, dão sustentação às concepções
antropocêntricas especistas que excluem da consideração moral animais
não-humanos. Tais capacidades foram tidas como exclusivamente humanas até os
estudos do primatólogo Frans de Waal, o primeiro a refazer a genealogia da
moralidade, atribuindo-a justamente à animalidade, não à hominidade.
A
capacidade de agregar benefícios para si, para os próximos a si e para os mais
distantes seres vivos, exige consciência, sensibilidade e aptidão para formular
juízos de valor, emocionais, em função do que as escolhas podem agregar.
A capacidade de raciocínio ético depende deste último nível de complexidade, o
deliberativo. Ele não existe a não ser em seres dotados da liberdade, portanto,
conscientes de si, do seu poder de beneficiar e prejudicar e da vulnerabilidade
ao dano que outros podem lhe causar, sejam esses outros, humanos, animais ou
eventos naturais. Tal habilidade traduz simplesmente a capacidade para
empreender movimentos necessários para implementar as próprias decisões com
vistas à autopreservação, à preservação dos seus e de todas as formas de vida
vulneráveis. Humanos e animais não-humanos possuem essa habilidade, cada um no
alcance e limite de sua racionalidade e emocionalidade específicas.
Neste
patamar, o da liberdade moral ou capacidade deliberativa, humanos podem romper
o padrão pelo qual a família, a escola, a sociedade ou qualquer outra ideologia
os formatam. Podem posicionar-se criticamente em relação ao que impede sua
própria evolução moral. Temos dois termos e dois conceitos, moral, para
designar a tradição, e ética, para designar a atitude crítica frente à
tradição, embora nem sempre seu uso respeite essa distinção no texto
filosófico.
Do grego,
a palavra éthos designa o caráter ou traço natural a partir do qual o
indivíduo se estrutura como sujeito da ação. Esse caráter tem duas dobras: a
herança fornecida pela espécie na qual o indivíduo nasce; e a formatação da
mente, da inteligência, das emoções, dos afetos e da sexualidade pela educação
ou, conforme prefere Aristóteles, pelo exercício e a repetição.
Mesmo
padronizado (patronizado, patriarcalizado), o exercício e a repetição são
filtrados pelo indivíduo, desdobrando-se em subjetividades específicas,
peculiares, sem que o molde ou o padrão da espécie seja determinista na constituição
da subjetividade peculiar a cada animal, sua singularidade. Ser ético em
relação aos demais seres vivos exige dos humanos que não violem o éthos
dos que se encontram na condição de vulnerabilidade na qual não podem se
defender, mas podem ser afetados por elas. Este é o caso da relação dos humanos
com outros animais: os outros não podem se defender dos malefícios decorrentes
das ações humanas, mas podem sofrê-los.
Salvando
o sujeito de uma formatação moral anacrônica, sua racionalidade emocional lhe permite
questionar os padrões valorativos impostos pela cultura. Este juízo crítico foi
denominado pelos gregos ethiké, termo do qual deriva o português, ética.
A ética, portanto, é simplesmente o exercício pelo qual o indivíduo põe em
questão os valores que formatam o padrão moral tradicional, revolucionando-os e
abolindo o que não tem sentido, o que fere e prejudica o outro, o que o
discrimina por conta de características que ele não tem poder de alterar, por
conta de seu éthos primordial, sua genética, ou de suas preferências e
tendências.
Exatamente
este projeto, o de questionar racionalmente o padrão
antropocêntrico-hierárquico especista criado pela filosofia ocidental para dar
aos humanos um estatuto acima de todas as espécies de vida e facultar-lhes as
ações, mesmo as que possam representar a eliminação do outro, levou alguns
filósofos a questionarem eticamente o padrão de valor especista elitista,
discriminador dos interesses e da vida de animais não-humanos.
De acordo
com a tradição, acalentada confortavelmente pelo mercado, a ciência, a
filosofia, o direito, as religiões e a arte, não há nada a ser condenado nas
ações humanas que causem dor a qualquer ser senciente não-humano, ou o levem ao
sofrimento e à morte. Os animais não-humanos, no entender da tradição
antropocêntrica especista, não dispõem da liberdade para empreender ações de
acordo com suas decisões. Sem condições de decidir sobre o que lhes diz
respeito, animais não-humanos estariam fora do âmbito da comunidade moral. Por
essa via, os humanos se autorizam a fazer aos animais o que bem entendem.
Essa
lógica antropocêntrica, hierárquica e especista, hegemonizou a moralidade
humana até o final do século XVIII, quando, finalmente, foi confrontada em seus
pressupostos por Humphry Primatt.
A concepção antiespecista
No final
do século XVIII, mais precisamente em 1776, ano da Revolução Norte-americana,
Humphry Primatt, graduado em música e doutor em teologia, pastor anglicano em
Aberdeem, dois anos antes de morrer aos 42 anos de idade, escreveu um livro
pequeno, intitulado A Dissertation on The Duty of Mercy and the Sin
of Cruelty to Brute Animals [Uma dissertação sobre o dever de compaixão
e o pecado da crueldade contra os animais brutos]. Não se tem conhecimento
de outro texto de Primatt (Cf. Felipe, 2006a:206-210).
The Duty
of Mercy [O
dever de compaixão], título da segunda edição do livro de Primatt, rejeita
a exclusão dos animais da consideração moral humana. Ao invés de eleger a capacidade
de raciocinar, de agir livremente e, portanto, de deliberar, como parâmetro
para decidir quem é digno de respeito e quem não o é, Primatt lembra aos
humanos que a pior coisa que pode acontecer a um ser senciente é ser-lhe
infligido dor e sofrimento, quando o paciente dessa dor ou desse sofrimento não
produz com seus atos os eventos dorentes e sofrentes [Ryder,
1998:45].
Segundo a
crítica de Primatt aos moralistas tradicionais do final do século XVIII, para
que a perspectiva do agente moral seja ética, importa levar em consideração se
o afetado por nossas decisões, atos e ações pode sofrer ou ser beneficiado por
elas. Os dois eixos da moralidade humana, a dor e o prazer, conforme
identificados por Aristóteles, reafirmados por Hobbes e pelos demais utilitaristas
ingleses e adotados pelos eticistas defensores dos animais (Jeremy Bentham e
Peter Singer, por exemplo), deixam de ser parâmetros exclusivos para se avaliar
a moralidade dos atos praticados contra os seres humanos e passam a ser
empregues também na avaliação das ações que atingem animais não-humanos.
A dor e o
prazer são os eixos de acordo com os quais Primatt critica o padrão da ética
tradicional, reformulada por ele para incluir os animais não-humanos no âmbito
da consideração e do respeito moral. A consideração pela dor e o sofrimento de
qualquer indivíduo, não importa sua espécie, oferece um novo parâmetro
filosófico para a formulação do juízo moral sobre o que é certo ou errado fazer
com eles, por eles ou contra eles (Singer, 1979).
O erro de
um gesto, uma decisão ou uma ação que afeta maleficamente outros seres
sencientes não depende da posse da racionalidade e da liberdade, nem da
capacidade para deliberar, de quem sofre a ação. O erro, no entender de Primatt
e da concepção ética utilitarista que desencadeou o movimento de libertação
animal ao redor do mundo na década de 70 do século XX, é definido em função da
capacidade que uma determinada ação tem de causar dor, sofrimento ou morte
àquele que se encontra vulnerável a ela.
Ao buscar
realizar, atender ou promover nossos interesses, se desprezamos o quanto isso
pode ferir e violar emocional, moral ou fisicamente outros seres sencientes,
deixamos de ser éticos. Para Primatt, a sensibilidade presentificada à
consciência, portanto, a senciência, deve ser o parâmetro moral segundo o qual
todos os nossos atos devem ser julgados, antes da ação.
Tal
concepção opõe-se radicalmente à moral tradicional. Segundo essa, o critério
para julgar se um ser é digno ou não de respeito moral é o lugar que ele ocupa
na hierarquia dos seres vivos. Se possui racionalidade, é digno de respeito. Se
não a possui, ou se a racionalidade que possui não pode ser enquadrada no
padrão da racionalidade tida como referente, o ser senciente deixa de merecer
respeito moral.
De acordo
com Primatt, a moralidade tradicional discrimina os animais não-humanos por
conta de sua configuração anatômica, fisiológica e psicológica. Concedendo às
bestas o estatuto de objetos da propriedade humana, desrespeita suas emoções,
sua inteligência, sua consciência, sua linguagem, enfim, seu éthos
singular. A tradição moral discrimina e violenta a singularidade neuromental e
emocional dos animais não-humanos, negando-lhes respeito aos seus interesses
fundamentais, alegando diferenças na configuração da aparência externa do corpo
animal. Conforme essa moralidade, os humanos podem continuar confortavelmente a
explorar, maltratar e matar os animais sencientes não-humanos, em benefício
próprio.
No
entender de Primatt, nenhum detalhe na aparência natural específica resulta de
mérito pessoal. Por isso não pode ser usado para justificar mérito nem demérito
moral. As diferenças na aparência singular de qualquer ser vivo não resultam
nem do desejo, nem do mérito do sujeito, nem de seu empenho pessoal. A
compleição física, a cor da pele, a riqueza, a força mental, fontes conhecidas
da singularidade na constituição dos humanos, não resultam do empenho pessoal,
portanto, estão aquém do mérito moral (Cf. Felipe, 2006: 219 e 220).
Tal
discriminação assemelha-se à que sofrem os seres escravizados e os demais
humanos alijados da consideração moral em função de alguma peculiaridade em
seus corpos ou mentes, escolhida pelo conceito universal dominante para
justificar seu autoproclamado direito de explorar, abusar e matar quem a
possua: a cor da pele, a configuração reprodutiva, as configurações de gênero,
as habilidades cognitivas, o tempo vivido ou qualquer atributo físico que
permita identificar o sujeito pela exclusão e assim destituí-lo de estatura
moral. O que foi feito às mulheres, às negras, às índias, às deficientes, às
pobres (e aos seus correlatos de quaisquer gêneros, masculino, feminino e
neutro) tem sido feito aos animais.
Entretanto,
se a dor é uma experiência intrinsecamente má para qualquer ser humano
senciente, conforme o reconhece Primatt (Cf. Felipe, 2006: 217), ela também o é
para qualquer outro animal senciente. Causar dor a um ser capaz de sofrê-la
conscientemente, alegando que não há nada de errado nisso, porque esse ser não
tem a configuração física humana, é puro ardil da racionalidade instrumental.
O
argumento de Primatt expõe simplesmente a hipocrisia moral tradicional. Um ser
não sente dor melhor nem dor pior, maior nem menor, por conta da configuração
externa de seu organismo (Cf. Felipe, 2006: 217). Ele a sente por conta de sua
configuração neuromental, seu diencéfalo, sua senciência. Foram necessários
dois séculos e meio, desde o texto The Duty of Mercy de Primatt, para
que as autoridades em ciência das emoções e da consciência reconhecessem a
todos os animais a capacidade de sentir, de sofrer e de saber de suas sensações
e de sua dor, portanto, a capacidade emocional para a dor, o prazer, o
sofrimento e o estar bem a seu próprio modo, chamado pelos humanos de
felicidade.
Se há um
aparato neurossensorial que faculta ao animal a experiência da dor, essa é um
traço evolutivo para que o animal possa afastar-se de algo que o danifica ou
aproximar-se de algo que o gratifica. Não há distinção entre a dor de um
indivíduo humano e a dor de um indivíduo não-humano. Se há dor, ela é
igualmente má, para ambos. Essa malignidade intrínseca da dor é o que precisa
ser levado em consideração para redefinir nosso estatuto e o dos demais animais
na comunidade moral humana.
Discriminar
a dor dos animais, alegando que o formato externo do corpo deles não se
assemelha ao nosso, é especismo.
“Dor é dor, seja infligida ao
homem ou ao animal; e a criatura que a sofre, seja homem ou animal, sendo
sensível à desolação que ela produz, sofre um mal; e o sofrer um mal,
imerecidamente, sem o ter provocado, quando não causou dano algum e quando não
pode pôr um fim a isso, simplesmente para que o poder e a malevolência sejam
exibidos, é crueldade e injustiça daquele que o produz.” (Primatt, Apud Felipe,
2006:217).
Em 1776,
a noção crítica que formulou o conceito de especismo já existia, mas o termo
mesmo, ainda não. Esse foi criado na década de 70 do século XX, também na
Inglaterra, pelo cientista e filósofo Richard D. Ryder.
Do conceito ao termo especismo
A
concepção ética de Humphry Primatt foi apresentada pela primeira vez em 1776,
em Aberdeen e apropriada por Jeremy Bentham, também na Inglaterra, em 1789, em
seu livro An Introduction to the Principles of Morals and Legislation [Introdução
aos princípios morais e da legislação] (Bentham, 1970:282-283), no qual faz
uma nota de rodapé extensa, explicando que os critérios adotados até então para
definir quem seria digno de respeito e consideração moral eram preconceituosos,
pois jamais inquiriam se o ser dorente era capaz, ou não, de sentir o abalo
causado pela dor infligida a ele.
Para
Bentham, seguindo a convicção de Primatt, o que importa não é se um animal é
capaz de raciocínio, ou não. O que importa é mantermos a consciência ética de
que o que fazemos a ele pode lhe causar dor, dano, tormento, sofrimento e
morte. Em suas palavras:
“[...] a questão não é: eles
podem raciocinar? nem, eles podem falar? mas, eles podem sofrer?” (Bentham,
1970: 282, nota b).
Dois
séculos transcorreram sem que a tradição (criticada por Bentham na esteira de
Primatt) imoral de infligir dor e sofrimento a qualquer animal senciente
recebesse um nome. Tinha-se a concepção clara dessa forma de discriminação,
praticada pelos humanos contra os animais de outras espécies, mas ainda
não havia sido criado um termo para designá-la. Mesmo Henry Salt, o primeiro
pensador britânico a escrever um livro usando no título os termos Direitos
Animais, em 1892, não deu nome ao conceito de discriminação contra os
animais, elaborado por Primatt.
A
Primeira Guerra, no início do século XX, deixou a questão animal amortecida. A
segunda avivou o sentimento de indignação contra a crueldade infligida a
humanos vulneráveis ao totalitarismo e, mais uma vez, a dor, o tormento, o
sofrimento e a morte dos animais não-humanos não entraram na pauta da reflexão
ética. O tema veio à tona apenas depois do fim da guerra fria, exatamente
quando floresceram os conceitos de imperialismo, totalitarismo, racismo e
machismo.
Em meados
da década de 70 do século XX, o pesquisador behaviorista e, à época,
vivissector, Sir Richard D. Ryder, criou o termo especismo para designar
a discriminação praticada contra animais não-humanos em nome de sua
configuração anatômica, fisiológica, emocional e mental, cujos traços e design
não coincidem com as características presentes na configuração dos indivíduos
da espécie humana. Segundo Felipe, que introduziu o termo especismo no
vocabulário filosófico brasileiro,
“O termo aparece pela primeira
vez em um panfleto em defesa dos animais, publicado por Richard D. Ryder em
Oxford, em 1973. Em seu livro editado em 1975, Victims of Science, o conceito
especismo (em inglês speciesism) é formulado definitivamente e adotado, então,
por Peter Singer.” (Felipe, 2003:20, nota 2).
Uma vez
cunhado por Ryder, o termo especismo passou imediatamente ao uso nos
textos de Peter Singer, o filósofo australiano que deu início ao movimento de
libertação dos animais em 1975 com o livro Libertação Animal, seguido,
em 1979, de Ética Prática, no qual os animais são levados em conta, em
igualdade com os humanos, a partir do princípio da igual consideração de
interesses semelhantes, o cerne do antiespecismo. Richard D. Ryder assim
esclarece o significado do termo especismo:
“Uso a palavra ‘especismo’ para
descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra as outras
espécies e traçar um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são, ambas,
formas de preconceito baseadas em aparências – se o outro indivíduo parece
diferente, considera-se, então, que ele se encontra além do parâmetro moral.
[...] Especismo e racismo (e na verdade sexismo) ignoram ou subestimam as
semelhanças entre o discriminador e aqueles contra quem esse discrimina e ambas
as formas de preconceito revelam indiferença pelos interesses de outros e por
seu sofrimento.” (Apud Felipe, 2006b:192).
As teses
da ética igualitária animalista antiespecista de Peter Singer estão firmadas
sobre os argumentos de Humphry Primatt, Jeremy Bentham, Henri Salt e Richard D.
Ryder, embora Singer os cite raramente. Seu suporte teórico são os conceitos de
dor e sofrimento, prazer e felicidade. Todo animal capaz dessas vivências é um
igual e por isso deve ser incluído no âmbito do dever de consideração e
respeito humanos. Se um ser sofre, escreve Singer,
“[...] não há justificativa moral
para a recusa em considerar esse sofrimento. Não importa a natureza do ser, o
princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado do mesmo modo
como o é o de qualquer outro ser [...]. Delimitar essa vinculação através de
certas características, tais como inteligência ou racionalidade, seria
delimitá-la de modo arbitrário.” (Apud Felipe, 2006b: 197).
Segundo
Singer e seus predecessores animalistas, o padrão da moralidade
antropocêntrica, assentada sobre o dever de não causar dor, sofrimento ou morte
apenas aos seres humanos, ignorando a semelhança de todos os seres sencientes,
deve ser superado através da abolição das formas de interação na qual os
humanos impõem aos animais não-humanos padrões de vida que atrofiam suas
mentes, algo que os animais não sofreriam se fossem deixados viver em liberdade
e de acordo com o éthos de sua espécie.
A analogia
O termo
especismo ganhou vigor na literatura ética animalista por reconhecer o
tratamento dispensado pelos humanos aos animais não-humanos como tão
discriminador quanto a forma tradicional de tratamento violento à qual
historicamente as mulheres, os homossexuais, os negros e outras minorias são
submetidos.
Na mesma
lógica da dominação descrita por Karen Warren em Ecofeminist Philosophy
(Cf. Rosendo, 2012:42), todos os seres com uma configuração física ou psíquica
singular, distinta do padrão eleito como referência para a construção da
identidade de gênero, raça e sexo, o padrão do macho branco heterossexual,
acabam por ser submetidos a interações nas quais seus interesses privados, sua
subjetividade, sua peculiaridade, sua singularidade, seu espírito ou éthos
específico não contam.
Aos
animais não foi reservado tratamento melhor do que aos negros, aos
homossexuais, às mulheres e a todas as pessoas em condições sociais e morais
vulneráveis. Esse tratamento infligido aos animais está justificado pela moral
tradicional com o argumento de que os humanos são de uma natureza, as plantas
de outra, os minerais de outra e os animais não-humanos de outra. Cada espécie
teria um estatuto moral definido hierarquicamente pela humana, podendo ser
submetida aos interesses humanos sem que haja uma contrapartida, ainda que isso
a prejudique. Nessa linha de argumentação antropocêntrico-especista, todas as
espécies de vida animal existem de algum modo, ainda que não revelado
evolutivamente, para servir aos interesses humanos, podendo ser exploradas ou
eliminadas da face do planeta.
O uso do termo especismo
Na
literatura filosófica animalista, o termo especismo passa a configurar a cena,
ocupando, com a crítica ao antropocentrismo, o papel protagonista na definição
de uma ética na qual a singularidade do éthos animal não seja
discriminada nem violentada.
A
filosofia que expõe os animais não-humanos à violência humana, justificando
tais práticas com a alegação de que os animais nascem para servir a propósitos
humanos, sustenta-se sobre a convicção de que o humano ocupa naturalmente o
centro e o topo da cadeia da vida. A moral antropocêntrico-especista está
fundada sobre a tese de que a vida dos animais humanos tem valor absoluto,
enquanto a dos não-humanos tem valor instrumental (Cf. Felipe, 2006b:199-258).
A
tradição moral não leva em conta o fato de que os animais dotados de um sistema
nervoso central e do diencéfalo, a sede dos estímulos dolorosos e prazerosos,
são seres sencientes, iguais em sua vulnerabilidade à dor, ao dano, ao tormento,
ao sofrimento e à morte, sem distinção em relação aos humanos.
O sistema
nervoso central organizado, a sensibilidade e a consciência, indicam que a vida
desse animal existe para atender a seu propósito singular e autopreservar-se,
em concordância com seu éthos. Se, de fato, os não-humanos nascessem
apenas para atender aos propósitos humanos, por que teriam que vir dotados do
mesmo sistema sensor sofisticado que permite, por um lado, esquivar-se dos
estímulos desagradáveis, desconfortáveis, dolorosos e letais, e, por outro,
buscar o bem-estar, o conforto, a segurança, o prazer e o bem próprio de sua
natureza específica? Indignado com Descartes, por sua tese de que os animais
seriam autômatas, destituídos da capacidade de sentir dor e de sofrer, Voltaire
escreve:
“Que lamentável e que pobreza de
espírito ter dito que animais são máquinas desprovidas de pensamento e emoções.
[...] Responda-me mecanicista: organizou a natureza todas as fontes do
sentimento nesse animal com o propósito de que ele nada possa sentir? Tem ele
nervos que o tornam incapaz de sofrer?” (Apud Felipe, 2003: 92).
Se cada
espécie de vida animal possui um éthos singular, onde está o sentido da
afirmação de que esse éthos não tem sentido algum, essa vida não tem
propósito algum e o animal está ali embutido em seu organismo somente à espera
de que um humano lhe dê sentido, tirando-lhe a vida para obter carnes, marfim e
pele, ou, escravizando-o para extrair leite e outras secreções, ovos, mel, lã e
seda?
Os desdobramentos éticos da crítica
ao especismo
Na
sequência do uso do termo especismo como correlato de machismo, sexismo e
racismo, tem sido possível aos bioeticistas animalistas aprofundar o conceito e
identificar desdobramentos morais da prática discriminadora e violenta contra
animais não-humanos.
Mesmo
entre os que se dizem protetores dos animais, expressão genérica que não
designa obviamente um humano defensor de direitos para todos os animais, o
especismo é recorrente. Há quem proteja uma ou duas espécies animais e
discrimine outras, devorando-as, ou usando partes de seus restos mortais para
vestir-se, calçar-se e enfeitar-se (pele, couro, marfim, seda, lã etc.).
Sem
perceber a matriz cognitiva e moral especista que formata nosso entendimento do
lugar dos não-humanos na teia da vida, continuamos a discriminar positivamente
o valor da vida de certos animais, eleitos para estima, companhia ou guarda,
atribuindo-lhe um peso maior do que o atribuído ao valor da vida de outros,
desprezados por não possuírem um atributo que possa servir de instrumento para
os humanos alcançarem seus propósitos.
Muitos
compram ou adotam animais para estima, companhia e guarda, sentem especial
afeto por eles e rejeitam a hipótese de infligir tratamento cruel, doloroso ou
prejudicial a esse animal que elegeram. Entretanto, esse afeto não se expande
para incluir no círculo da moralidade os animais da mesma espécie que não estão
sob sua guarda, ou os que se encontram servidos em seu prato. Os outros animais
são considerados de outras espécies, portanto, não dignos de respeito.
Outros,
impregnados da consciência de que seu animal possui inteligência,
sensibilidade, linguagem e capacidade de sofrer, defendem ferrenhamente que
esses animais, da espécie à qual o seu pertence, sejam tratados com os mesmos
direitos humanos. Entretanto, podem admitir tratamento não tão decente no caso
de animais que têm outro formato, outra linguagem e outra consciência,
especialmente se nenhum cientista até agora os estudou ou confirmou tais
habilidades.
Nesses
casos, o especismo vem recortado de preferências pessoais eletivas. Os animais
eleitos para companhia, guarda ou estima, são considerados dignos de direitos
iguais aos humanos nos quesitos fundamentais da vida: não sofrer maus-tratos,
não passar necessidades, não ser usado ou escravizado, não ser aprisionado nem
cerceado em seu espírito e não ser assassinado. Mas a indiferença reina em
relação aos outros animais.
O
especismo eletivo tem infinitas formas de expressão. Os defensores de baleias
podem comer carnes (incluindo a de peixes) e ingerir leite e laticínios, sem
notar que estão defendendo a vida e o bem próprio de um animal, mas ignoram sua
semelhança com outros. Nesse caso, a igualdade e a coerência, para não falar da
justiça e da ética, estão recortadas, o que desvirtua o argumento de que todos
os animais são iguais e, portanto, seus interesses devem ser considerados
igualmente.
Defender
uma espécie animal não é garantia de antiespecismo. Pode-se ser um especista
elitista (discriminar todos os animais não-humanos, reconhecendo valor moral
apenas à vida humana), ou eletivo (reconhecer valor moral a um determinado
animal enquanto menospreza ou vilipendia a vida de todos os demais). Apenas a
ética abolicionista garante que não se escorregue ladeira abaixo em direção ao
especismo, no confronto com a real singularidade ou dissimilaridade de cada
animal.
O
especismo pode desdobrar-se em duas vertentes: a discriminação coletiva de
todos os animais não-humanos por conta de uma alegada incapacidade de fazerem
uso da racionalidade (especismo elitista), e a discriminação seletiva de alguns
animais, escolhidos para serem amados e protegidos, enquanto o restante deles é
mantido distante do lugar concedido aos eleitos (especismo eletivo). Em ambas
as formas do especismo, a elitista e a eletiva, os humanos separam os animais
em compartimentos e atribuem direitos a alguns, enquanto os outros permanecem
destituídos de qualquer direito (Cf. Felipe, 2007a:143-159). Tal forma de
conceber o valor da vida ainda preserva o formato da moral tradicional, para a
qual a singularidade não pesa na reflexão sobre os direitos fundamentais
individuais dos animais não-humanos. Não é possível fundamentar uma ética sobre
tais dicotomias e incoerências.
O padrão
tradicional da igualdade, a racionalidade humana androcêntrica, antropocêntrica
e especista, não admite a expansão do círculo da moralidade para incluir na
consideração moral seres com formatos distintos do padrão humano. O padrão
antiespecista, por sua vez, pode manter a moralidade androcêntrica,
antropocêntrica e especista, ao buscar no animal que elege para conceder
direitos, proteção e estima, um traço ou característica qualquer que,
sabidamente, não está presente em animais de outras espécies, pois a vida e o
bem próprio dos animais de todas as espécies não requerem enquadrar-se em
qualquer sistema de valores, criados por homens (brancos e dominantes). A vida
não é vivida para servir a interesses alheios impostos, nem para corresponder a
padrões de valores extrinsecamente definidos, alienantes do próprio valor.
Cada vida
traz em si mesma um éthos e seus desígnios peculiares para forjar-se em
plena singularidade. Nenhuma vida é vivida para enquadrar-se nos moldes
impostados. Cada vida, em sua singularidade e preservando-se em sua
vulnerabilidade, desenha para si a moldura na qual quer ser contida. E isso lhe
basta.
As implicações morais da ética
abolicionista
Para
abolir o especismo elitista (que discrimina todos os animais e os inferioriza
em relação a qualquer humano) e ao especismo eletivo (que discrimina todos os
animais que não possuem a característica padrão do animal eleito para estima),
é preciso sair do padrão tradicional da igualdade, desconstruir o
androcentrismo, o antropocentrismo e qualquer outro modo de conceber um tipo de
vida ou de existência como padrão, ao qual todos os demais devam seguir ou
atender.
A ética
genuinamente antiespecista tem propósito abolicionista em relação a todas as
formas de discriminação que levam seres sencientes à sofrência da dor e da morte
por conta dos interesses, utilidades e preferências humanas. Segundo tal ética,
o bem próprio e os interesses de quaisquer animais, humanos e não-humanos, têm
valor não-instrumental.
O eixo, o
centro e o único fim, próprio daquele que nasce, é prover sua vida das
experiências que possibilitam o florescimento de sua consciência singular. O
único critério de igualdade passível de ser aplicado para abranger todos os
seres sencientes é o da vulnerabilidade à dor, ao dano, ao tormento, ao
sofrimento e à morte. Nesses quesitos, todos nós, animais, somos iguais em
nossa dissimilaridade.
Ao
vivenciar a dor, o dano, o sofrimento e a morte, cada animal o faz de modo
singular, em meio aos bilhões de outros que também nascem, vivem, sofrem e
morrem. Cada animal herda um éthos genérico de sua espécie. Mas a trama
dos conceitos imagéticos pela qual esse animal autopresentifica suas
experiências sensoriais, emocionais e mentais, faz dele um indivíduo singular,
sem o qual não se configura um espírito específico. Tal singularidade é o ponto
da igualdade com todos os outros seres sencientes, uma igualdade não
padronizada, uma igualdade que não pode ser classificada como superior nem
inferior, simplesmente, dissimilar. Singularidade e vulnerabilidade são,
portanto, dois conceitos fundamentais da ética abolicionista antiespecista.
Para que
a ética antiespecista abolicionista se concretize é preciso que seja erradicado
o direito de propriedade que os humanos têm sobre todas as formas de vida desse
planeta. Enquanto os animais estiverem sob o domínio humano e forem
considerados objetos passíveis de apropriação, exploração e morte, a mente
humana e, portanto, a proposta ética que ela engendra, será especista.
Veganismo
A
filosofia antiespecista abolicionista desafia a consciência humana a adotar um
modo de vida (díaita, para os gregos) vegano. Segundo a concepção de
vida vegana, nenhum animal, seja lá de qual espécie for, deve ser usado,
explorado ou destruído para se obter de seu organismo qualquer elemento
destinado ao consumo ou à produção de itens a serem consumidos pelos humanos. A
ética vegana é a forma mais genuína da ética animalista antiespecista
abolicionista.
Nota biográfica:
Dr. phil.
Sônia T. Felipe é doutora em Teoria Política e em Filosofia Prática pela
Universidade de Konstanz (Alemanha, 1991). Realizou projeto de pós-doutorado em
Bioética – Ética Animal (Universidade Lisboa, 2001-2002). Introduziu no Brasil
as teorias éticas animalistas de Peter Singer, Tom Regan e Gary L. Francione, e
seus conceitos de igualdade, valor inerente e direitos para os animais. Foi
professora e orientadora dos cursos de graduação em Filosofia e Doutorado
Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC por 31 anos. Autora dos livros:
Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em
defesa dos animais (Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos
abolicionistas (Edufsc, 2007); Galactolatria: mau deleite (Ed. da
Autora/Ecoânima, 2012). Colunista de Questão de Ética – Agência de Notícias de
Direitos Animais (ANDA, desde 2009). Cofundadora da Sociedade Vegana no Brasil
(2010).
Referências bibliográficas
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Sexual Politics of Meat: a Feminist-Vegetarian Critical Theory. New York:
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FELIPE, Sônia T. (2006).
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1, n. 1, pp. 207-229.
FELIPE, Sônia T. (2003). Por
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sensível ao cuidado: alcance e limites da filosofia ecofeminista de Warren.
Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, Programa de Pós Graduação em
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Speciesism. London: McFarland & Company.