Por Alessandra Nahra*, no site Sul 21
Esses dias eu li um relato da Vivi, do PorQueNão?, em que ela contava que deixou de se declarar vegana no dia em que estava em uma comunidade caiçara “e tinha peixe fresco na folha de bananeira, enquanto os legumes vinham de longe, do Ceasa e com veneno”. Ou seja, com impacto ambiental bem maior do que o peixe pescado ali. Eu entendo completamente essa lógica e essa decisão, mas proponho uma reflexão: por que não tem comida plantada em uma comunidade caiçara? Por que eles não estão produzindo seu próprio alimento além daquele que podem pescar? Muito provavelmente essa comunidade cultivava comida, em um tempo não tão distante. E aí, o que aconteceu? Colonialismo, industrialização, urbanização, progresso, modernidade — uma combinação disso tudo.
Aconteceu na America Latina inteira. Fomos colonizados: primeiro pelo “conquistador”, o homem branco que chegou da Europa saqueando tudo, e, mais recentemente, pelo capitalismo — um sistema econômico que envolve a exploração do trabalho de outros, o lucro sobre a exploração do trabalho de outros, e a alienação (dos meios de produção, da produção em si, do conhecimento de produzir, da terra). Na Guatemala, em 2017, eu vi um cenário muito didático, que mostrava isso melhor do que qualquer aula de história que já tive na vida. Em uma comunidade rural na beira de um lago, na qual se chega apenas de lancha, as pessoas só plantam café, para exportação. O café é cultivado na mata, na sombra de outras árvores. As trilhas da mata são cheias de lixo: embalagens de salgadinhos. No mercado da vila só tem um item vegetal: tomate. O resto é comida ultra-processada: os salgadinhos cujas embalagens poluem as trilhas. Esse povo plantava comida, um dia. Agora são funcionários do capitalismo global e se alimentam do lixo produzido pelo capitalismo global. A terra para cultivar comida está ali. Mas, o conhecimento, não mais.
Nossa comida é colonizada. Quem nos alimenta, nesse sistema alimentar agroindustrial global, são mega empresas transnacionais. Uma cadeia de produção que começa na semente, transgênica e patenteada, que é vendida ao agricultor por outra transnacional, junto com o pacote de fertilizante, herbicida, agrotóxico. E que chega até nós, os “consumidores”, através de grandes redes varejistas com um imenso poder de negociação. Nós pagamos caro por uma comida que não é alimento, ou que está envenenada, ou cujo agricultor responsável pelo plantio foi o elo da cadeia que menos teve o seu trabalho valorizado em termos financeiros.
Não interessa a esse sistema que as pessoas conheçam a terra e saibam plantar. Interessa que comprem. Por isso não há vegetais cultivados nem mesmo em certas áreas rurais, como na comunidade caiçara que Vivi visitou. Por isso, o veganismo inclusivo e popular (o que serve para todos, não apenas os humanos que podem pagar; o que serve para todos, não apenas humanos) tem que ser anti-capitalista. É duvidosa a vantagem de deixar de comer bichos e seus derivados e continuar consumindo produtos alimentícios de transnacionais. Quando você compra um produto processado de uma empresa dessas, você está apoiando o tipo de agricultura que está destruindo florestas, mesmo que o boi que comeu a floresta — ou a soja plantada na ex-floresta — não esteja indo para a sua boca. Não tem vantagem nem para os bichos, aliás: as mesmas empresas que lucram com o nicho de mercado “vegano” (entre aspas porque veganismo não é um nicho de mercado) continuam lucrando ainda mais com os nuggets, a maionese de ovo de galinha, o leite da vaca. Um total de zero animais foram poupados nessa estratégia de marketing.
Não adianta ver o veganismo como estilo de vida ou escolha alimentar, como algo descolado da política. Veganismo não pode ser baseado no consumo e não é nicho de mercado. Precisamos pensar o veganismo amplo e popular, e isso envolve decisões que ultrapassam a questão de comer ou não bichos e derivados deles. Tem que pensar em classe, raça, cultura, educação… está tudo misturado. Eu acho que o maior trabalho do veganismo político, agora, é disseminar isso, dizer — olha, veganismo não é comprar ovo vegetal, e não é sobre salvar bichinhos. Veganismo é um movimento amplo de libertação e autonomia.
Veganismo tem que partir de uma perspectiva anti-capitalista. Por que o capitalismo nos faz reféns de um sistema de produção e consumo em que a autonomia e a possibilidade de agência (*) são muito escassas.
(*) Na sociologia, agência refere-se à capacidade de indivíduos de agir independentemente e fazer suas próprias escolhas livremente.
Por um veganismo brasileiro
Há um debate no movimento vegano brasileiro sobre o próprio uso da palavra vegano. Um dos motivos é que as pessoas relacionam a palavra vegano a elitismo, consumo, comida cara e gente chata. Conheço quem não se declara vegano mesmo sem comer o peixe da comunidade caiçara. As pessoas têm receio de serem mal compreendidas ou taxadas de elitistas. Alguns preferem se dizer anti-especista. Que funciona, também, mas mais especificamente para um público iniciado. Talvez, usando esse termo, o vegano-que-não-quer-se-dizer-vegano pareça mais politizado e menos consumista. Mas, na minha opinião, isso não ajuda muito a angariar simpatia ou espalhar informação.
Se a gente não chamar nossa ação pelo que é — veganismo — muita gente pode passar a vida achando que veganismo é coisa de rico e nunca sequer ouvir ou entender o termo não-especista. Se a gente não chamar nossa ação pelo que é, e mostrar o que é (spoiler: não é comprar comida cara) aquela pessoa que está iniciando no mundo do veganismo, que não sabe nada sobre termos e tretas, tem tudo para ser cooptada pelo veganismo de mercado e passar um bom tempo comprando justamente comida cara no empório natural, buscando substitutos para chantili e leite condensado, e procurando por opções veganas no menu de restaurantes — até, quem sabe, um dia, com sorte, se ver no meio da feira livre com todas as suas necessidades atendidas e um ponto de exclamação de desenho animado em cima de sua cabeça: “ah, então isso é que é veganismo?”.
Está na hora da gente resgatar o termo vegano das mãos do mercado. Comida vegana é PLANTA. E não caixa de papelão com plástico dentro com V estampado na capa com comida processada dentro vendida cara no “empório natural”. Precisamos reclamar de volta essa associação. Para que, quando a pessoa pensar “vegano”, ela não pense em elitismo e privilégio, e sim em planta, roça, natureza, agroecologia, alimento produzido de maneira ambientalmente sustentável e socialmente justa; em pais e avós plantando hortinha em casa, em ancestralidade: mandioca, amendoim, feijão, abóbora, milho. A gente tem que mostrar que a essência do veganismo é popular, que a palavra foi apropriada pelo capitalismo pra descrever um nicho de mercado, mas que veganismo não é sobre comprar coisas e excluir pessoas.
Não tem como veganismo ser um comportamento que, mesmo não explorando animais, continua mantendo um sistema que os explora — assim como explora humanos e o planeta.
O chamado carnismo, esse exagero de consumo de carne que está matando florestas e populações, essa cultura que associa a carne e produtos lácteos a fartura e riqueza e status e virilidade e masculinidade é uma invenção do capitalismo. Ou, indo mais longe, da dobradinha patriarcado/colonialismo, que andam de mãos dadas e são os pais do capitalismo.
Não tinha vaca aqui, e nem galinha, até o colonizador trazer. As populações originárias comiam basicamente mandioca, batata-doce, abóbora, amendoim, feijão. Os poucos bichos que eles comiam eram caçados ou pescados, e não aprisionados. Comida europeia não era palatável para o indígena de Pindorama; o conquistador chegou impondo a comida estrangeira com violência. O colonialismo está na base dos hábitos alimentares que são a base do nosso consumo.
Se livrar desses hábitos e gostos que foram culturalmente se arraigando (comemorar tudo com churrasco, “não vivo sem queijo”, prática é comida pronta, bolacha recheada é deliciosa — mentira, é uma baita porcaria feita pra gente se viciar) é um ato descolonizador. Descobrir a comida abundante na terra, plantar, comprar do pequeno produtor mais próximo de casa, achar comida na rua, é aplicar o anti-capitalismo na prática. E é mais barato.
Eles querem que a gente compre o lixo do capitalismo mundial. Eu não vou comprar. Vamos junto?
Para saber mais:
AZEVEDO, Eliane. Manifesto da comida de verdade ou comer como ato político. 2016.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2011.
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 5ª., 2015. Brasília (DF). Manifesto à Sociedade Brasileira. Disponível em: www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/noticias/2015/novembro/manifesto-a-sociedade-mostra-o-que-e-comida-de-verdade/copy2_of_manifesto.pdf
ESTEVE, Esther Vivas. O Negócio da Comida: Quem controla nossa alimentação?. São Paulo: Expressão Popular, 2017. 269 p.
Ministério da Saúde. Brasília (DF): Guia Alimentar para a População Brasileira, 2014. 156 p. Disponível em http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2014/novembro/05/Guia-Alimentar-para-a-pop-brasiliera-Miolo-PDF-Internet.pdf
RECINE, Elisabetta. Precisamos de comida de verdade no campo e na cidade. 2017. Disponível em: https://www.embrapa.br/-/artigo-elisabetta-recine
(*) Jornalista e plantadora urbana, dá oficinas de horta, compostagem e alimentação política e escreve sobre sistemas alimentares, agricultura sustentável e consumo crítico no site herbívora.com.br, no medium.com/@alenahra e em outras publicações.