Diante da injustiça, a covardia se veste de silêncio (Julio Ortega) - frase do blog http://www.findelmaltratoanimal.blogspot.com/

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Como o patriarcado desmantelou o matriarcado

Por Leonardo Boff

É difícil rastrear os passos que possibilitaram a liquidação do matriarcado e o triunfo do patriarcado, há 10-12 mil anos. Mas foram deixados rastos dessa luta de gênero. A forma como foi relido o pecado de Adão e Eva nos revela o trabalho de desmonte do matriarcado pelo patriarcado. Essa releitura foi apresentada por duas conhecidas teólogas feministas, Riane Eisler (Sex Myth  and Poilitics of the Body: New Paths to Power and Love, Harper San Francisco 1955) e Françoise Gange (Les dieux menteurs, Paris, Editions Indigo-Côtes Femmes,1997).
 Segundo estas duas autoras se realizou a uma espécie de processo de culpabilização das mulheres no esforço de  consolidar o domínio patriarcal.

Os ritos e símbolos sagrados do matriarcado são diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior.
O atual relato do pecado das origens, acontecido no paraíso terrenal, coloca em xeque quatro símbolos fundamentais da religião das grandes deusas-mães.
O primeiro símbolo a ser atacado foi a própria mulher (Gn 3,16) que na cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal ela simbolizava a Grande-Mãe, a Suprema Divindade.
Em segundo lugar, se desconstrói o símbolo da serpente, considerado o atributo principal da Deusa-Mãe. Ela representava a sabedoria divina que se renovava sempre como a pele da serpente. 
Em terceiro lugar, desfigurou-se a árvore da vida, sempre tida como um dos símbolos principais da vida. Ligando o céu com a terra, a árvore continuamente renova a vida, como fruto melhor da divindade e do universo. O Gênesis 3,6 diz explicitamente que “a árvore era boa para se comer, uma alegria para os olhos e desejável para se agir com sabedoria”.
Em quarto lugar, destruí-se a relação homem-mulher que originariamente constituía o coração da experiência do sagrado. A sexualidade era sagrada pois possibilitava o acesso ao êxtase e ao saber místico.
Ora, o que fez o atual relato do pecado das origens? Inverteu totalmente o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Dessacralizou-os, diabolizou-os e os transformou de bênção em maldição.
A mulher será eternamente maldita, feita um ser inferior. O texto bíblico diz explicitamente que “o homem a dominará” (Gen 3,16). O poder da mulher de dar a vida foi transformado numa maldição: “multiplicarei o sofrimento da gravidez” (Gn 3,16). Como se depreende, a inversão foi total e de grande perversidade.
A serpente é maldita (Gn 3,14) e feita símbolo do demônio tentador. O símbolo principal da mulher foi transformado em seu inimigo fidagal: “porei inimizade entre ti e a mulher... tu lhe ferirás o calcanhar” Gn 3,15)
A árvore da vida e da sabedoria vem sob o signo do interdito ( Gn 3,3,). Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de sabedoria. Agora comer dela significa um perigo mortal (Gn 3,3), anunciado por Deus mesmo. O cristianismo posterior substituirá  a árvore da vida pelo lenho morto da cruz, símbolo do sofrimento redentor de Cristo.
O amor sagrado entre o homem e a mulher vem distorcido: “entre dores darás à luz  os filhos; a paixão arrastar-te-á para o marido e ele  te dominará” (Gn 3,16). A partir de então se tornou impossível uma leitura positiva da sexualidade, do corpo e da feminilidade.
Aqui se operou uma desconstrução total do relato anterior, feminino e sacral. Apresentou-se outro relato das origens que vai determinar todas as significações posteriores. Todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador.
O trabalho das teólogas pretende ser libertador:  mostrar o caráter construído do atual relato dominante, centrado sobre a dominação, o pecado e a morte; e propor uma alternativa mais originária e positiva na qual aparece uma relação nova com a vida, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade.
Essa interpretação não visa repristinar uma situação passada, mas, ao resgatar o matriarcado, cuja existência é cientificamente assegurada, encontrar um ponto de equilíbrio maior entre os valores masculinos e femininos para os dias atuais.
Estamos assistindo a uma mudança de paradigma nas relações masculino/feminino. Esta mudança deve ser consolidada com um pensamento profundo e integrador que possibilite uma felicidade pessoal e coletiva maior do que aquela debilmente alcançada sob o regime patriarcal. Mas isso só se consegue desconstruindo relatos que destroem a harmonia masculino/feminino e construindo novos símbolos que inspirem práticas civilizatórias e humanizadoras para os dois sexos. É o que as feministas, antropólogas, filósofas e teólogas e outras estão fazendo com expressiva criatividade. E há teólogos que se somaram a elas.
Leonardo Boff junto  com a feminista Rose Marie Muraro escreveu: Feminino  e masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças, Record 2010.