Eu não vou conseguir ser linear, mas espero que entendam os
pormenores desta história íntima. Eu morei 10 anos em Londrina, no norte do Paraná,
em um bairro de periferia chamado Jardim Leonor e estudava em uma escola
estadual. Na época não era assim muito comum ter sonhos além de chegar ao final
do ensino médio, então a falta de credibilidade das pessoas em mim já começava
ai. As pessoas, menos a minha mãe. Quando eu tinha 16 anos eu decidi mudar de
período na escola, indo do matutino ao noturno, para que assim tivesse um tempo
para trabalhar e pagar o cursinho pré-vestibular. E isso já era uma audácia
muito grande: desejar ingressar na Universidade Estadual de Londrina. A minha
mãe não deixou que eu seguisse com estes planos, dizia que seria pesado demais
conciliar trabalho e escola, e me sobraria pouco ou quase nenhum tempo livre
pra diversão e coisas de adolescente. Por isso eu comecei a tentar estudar em
casa mesmo, só com os materiais da escola – internet era um luxo inimaginável.
Na verdade, nem computador eu tinha, e não tinha vaga ideia de quando eu teria
um. A minha mãe trabalhava como costureira autônoma.
Tudo isso para explicar que: era impossível pagar cursinho,
era impossível pagar escola particular e o que eu tinha era um punhado de
livros e o sonho de ingressar no curso de Relações Públicas da UEL. Essa era
uma situação risível no meio onde eu vivia. O ensino superior não era um direito
de todos. Nós, que estávamos às margens da cidade, geralmente acabávamos por
servir os que estavam no topo. Era muita audácia da minha parte.
Para encurtar esta parte da história: Em fevereiro de 2005
eu fui a uma festa promovida pela rádio pop local, que divulgaria o resultado
do vestibular ao vivo, e quando eles distribuíram o jornalzinho do resultado
(patrocinado pelo maior colégio particular da cidade, risos), meu nome estava
lá, e naturalmente minha mãe chorou quando recebeu a notícia por telefone, um
celular que eu peguei emprestado de um amigo.
Estaria tudo ok se não fosse um porém: eu era cotista. Isso
aí é como se eu carregasse alguma placa em neon piscante dizendo que eu não
pertencia àquele lugar. Desde o começo eu ouvi manifestações hostis de pessoas
que diziam abertamente que eu não deveria estar ali, pelos seguintes motivos:
– Elas estudaram muito, pagaram 2, 3, 4 anos do cursinho mais caro da cidade justamente para terem mais chance.
– Um possível mau desempenho meu atrasaria a turma toda.
– É racismo inverso contra brancos (sic).
– Cria vagabundos.
– Elas estudaram muito, pagaram 2, 3, 4 anos do cursinho mais caro da cidade justamente para terem mais chance.
– Um possível mau desempenho meu atrasaria a turma toda.
– É racismo inverso contra brancos (sic).
– Cria vagabundos.
Eu queria explicar estes pontos de maneira ponderada e
organizada, mas não dá. A explicação vai vir bagunçada, tal como a bola de ódio
nutrida contra cotistas nas turmas de 2005 da Universidade Estadual de
Londrina.
Pra começar, vocês precisam entender que eu não acredito no
sistema de vestibulares como seleção de pessoas inteligentes e aptas a esse
grande portal de suposição de superioridade intelectual chamado Universidade.
Pra mim, o ensino deveria ser universal. E para o vestibular nós nos matamos
para compreender ou decorar coisas que às vezes fazemos questão de esquecer o
mais rápido possível, porque temos (ou deveríamos ter) direito de escolher as
áreas que gostamos mais. Meus conhecimentos em química evaporaram tão rápido
quanto perfume ao sol. Mas em mim ficou a Geografia Política, que eu fazia
questão de ser a melhor aluna da sala, História, Literatura e os idiomas. E era
isso que eu queria continuar estudando. O vestibular é um funil desgraçado e
cruel.
As escolas moldam crianças e adolescentes para passarem em
provas “difíceis”, abordando questões pouco compreensíveis e ignorando toda a
realidade social, só para estampar a cara do aluno vencedor e fazer dele uma
mídia espontânea, que trará mais alunos para a escola e, assim, mais
dinheiro. Conhecimento pode ser adquirido, mas não deveria ser tão
difícil. Desde mensalidades, até preços de livros, é tudo um grande obstáculo.
Quem trabalha com educação sabe disso ainda melhor do que eu, por ter uma visão
global e maior conhecimento sobre a influência econômica no sistema
educacional. Mas a prática não deixa muita dúvida: educação é para quem pode
comprar.
Sobre o racismo inverso a gente finge que não ouviu, pro bem da nossa saúde mental. E se insistirem, uma aula explicando o massacre das populações negras deveria ser suficiente. Se não for, é porque o ouvinte é mau-caráter, mesmo. E também me surgia a dúvida: a pessoa estuda 4 anos em escola particular e culpa uma cotista de ter roubado a vaga? Não soa razoável. Mas dinheiro ainda importava.
Sobre o racismo inverso a gente finge que não ouviu, pro bem da nossa saúde mental. E se insistirem, uma aula explicando o massacre das populações negras deveria ser suficiente. Se não for, é porque o ouvinte é mau-caráter, mesmo. E também me surgia a dúvida: a pessoa estuda 4 anos em escola particular e culpa uma cotista de ter roubado a vaga? Não soa razoável. Mas dinheiro ainda importava.
Ai vem a nova parte da minha novela.
Sobre a vagabundagem cotista: possivelmente a acusação mais esdrúxula neste mar de chorume racista. O curso de Relações Públicas não é dos mais caros. Os livros saem por cerca de 40 reais. A exceção são os livros de Economia e Marketing que, às vezes, passam dos 100. Mas todo aquele volume de xérox começou a falir a conta bancária que eu já não tinha. E, em certos dias, eu precisava escolher entre pagar 3 reais de passagem de ônibus ou usar estes mesmos 3 reais para comprar comida. Dentro do ambiente acadêmico, porém, o desempenho era equivalente. Eu não sentia que era menos capaz do que meus colegas oriundos de escolas particulares.
Então eu ingressei em um projeto chamado Afroatitude, que unia alunos cotistas de 10 universidades públicas:
Sobre a vagabundagem cotista: possivelmente a acusação mais esdrúxula neste mar de chorume racista. O curso de Relações Públicas não é dos mais caros. Os livros saem por cerca de 40 reais. A exceção são os livros de Economia e Marketing que, às vezes, passam dos 100. Mas todo aquele volume de xérox começou a falir a conta bancária que eu já não tinha. E, em certos dias, eu precisava escolher entre pagar 3 reais de passagem de ônibus ou usar estes mesmos 3 reais para comprar comida. Dentro do ambiente acadêmico, porém, o desempenho era equivalente. Eu não sentia que era menos capaz do que meus colegas oriundos de escolas particulares.
Então eu ingressei em um projeto chamado Afroatitude, que unia alunos cotistas de 10 universidades públicas:
“O Programa Nacional Afroatitude propicia aos alunos negros
bolsas para desenvolverem projetos com os temas: Cultura e População
Negra/Discriminação Racial, Vulnerabilidade Social, Prevenção das DST/AIDS e
Direitos Humanos. Na UEL, o relatório final dos bolsistas Afroatitude que
participaram de projeto de iniciação científica (2005-2007) deu-se com a
entrega de um artigo sob supervisão do orientador. Os trabalhos foram
surpreendentes, considerando que se tratavam de alunos da primeira série, que
descortinavam um mundo extremamente novo em relação ao seu cotidiano, quer como
vivência em sala de aula, quer como participação em projetos.”
Com este projeto eu entrei em contato com a cultura negra, o
que me era inédito, usei o dinheiro da bolsa pra comprar o primeiro computador
da minha vida, estudei a vulnerabilidade da população negra e isso serviu de
estopim pra tudo o que eu sou hoje. Apoiados pela Secretaria dos Direitos
Humanos do Governo Federal, nós tivemos a chance de estudar a influência e as
carências das populações negras das regiões em que vivíamos, e pudemos
finalmente ter a noção do tanto de trabalho que ainda havia a ser feito. Eu não
sei se consigo ser objetiva neste ponto e explicar direito a importância deste
projeto em minha vida. Digamos que minha intelectualidade ganhou na loteria
acumulada. Muita riqueza de informação. Em paralelo a isso, eu queria entender
por que alguns colegas insistiam que eu e meus demais amigos cotistas éramos
inúteis e tão dispensáveis, e por que não deveríamos estar ali. Na época era
algo que eu não conseguia nem começar a explicar, e me restava ficar calada em
situações constrangedoras, como quando pessoas riram ao assistir “Quanto Vale?
Ou é por quilo?”, chamando objetos de tortura de escravos de “enfeite pra
cara”.
Me deem um desconto, eu era uma piveta de 17 anos sem muito acesso à informação. Felizmente, 4 anos foram suficientes pra provocar uma tormenta em mim, que me deixou cada dia menos tolerante a provocações racistas.
Me deem um desconto, eu era uma piveta de 17 anos sem muito acesso à informação. Felizmente, 4 anos foram suficientes pra provocar uma tormenta em mim, que me deixou cada dia menos tolerante a provocações racistas.
Eu me formei em 2008, sem ter a minha foto de criança
exposta no painel da festa, como meus outros colegas, por eu não ter conseguido
pagar a festa. Eu fui como convidada de uma amiga.
Eu me formei odiando festas de formatura e me sentindo deslocada.
Mas o que é importante dizer que cotas funcionam, sim. E incomodam, também. Incomodam porque provam que vestibular não serve mais pra nada, e porque “mescla” um ambiente que, até 10 anos atrás, era homogêneo. Branco. As cotas provam que elite intelectual é um termo inventado para deprimir e assustar aqueles que não possuem grandes quantias de dinheiro para serem gastas em escolas que vendem mais imagem do que conhecimento. Ou para manter estas pessoas longe da preocupação da escola pública, porque afinal, pra que se preocupar com a escola da filha da empregada se a tua cria pode estudar no palácio do centro?
Eu me formei odiando festas de formatura e me sentindo deslocada.
Mas o que é importante dizer que cotas funcionam, sim. E incomodam, também. Incomodam porque provam que vestibular não serve mais pra nada, e porque “mescla” um ambiente que, até 10 anos atrás, era homogêneo. Branco. As cotas provam que elite intelectual é um termo inventado para deprimir e assustar aqueles que não possuem grandes quantias de dinheiro para serem gastas em escolas que vendem mais imagem do que conhecimento. Ou para manter estas pessoas longe da preocupação da escola pública, porque afinal, pra que se preocupar com a escola da filha da empregada se a tua cria pode estudar no palácio do centro?
Como costureira, empregada e babá, a minha mãe passou a vida
construindo sonhos comigo. O sistema de cotas me ajudou a realizar um deles,
Mas esta é a visão individualista, e vocês precisam entender o impacto global
disto. Sendo cotista, eu ingressei em um excelente curso de uma excelente
instituição, recebi um tsunami de cultura negra que me empoderou de uma forma
que eu nem imaginei que fosse possível. Já formada, eu passei a me preocupar em
ser uma multiplicadora, levando pra frente o que eu aprendi com o Afroatitude,
e faço questão de empoderar cada jovem negro que passa pela minha vida. Com o
sistema de cotas eu enfrentei a sociedade mimada, acostumada a ser bem dividida
entre os que nasceram pra servir e os que nasceram pra serem servidos, e eu
trabalho até hoje contra segregação racial. E vou continuar trabalhando
enquanto meu corpo e minha mente permitirem.
Como profissional de Relações Públicas, aos 24 anos eu
alcancei a posição de gerência da empresa onde trabalhei. Não me soa nada ruim.
Eu voltei a estudar em 2010, desta vez escolhi aprender a ler, escrever e falar árabe coloquial e árabe clássico. Estudei cinema árabe, literatura árabe, filosofia árabe, história árabe.
Eu voltei a estudar em 2010, desta vez escolhi aprender a ler, escrever e falar árabe coloquial e árabe clássico. Estudei cinema árabe, literatura árabe, filosofia árabe, história árabe.
O sistema de cotas para negros é bem simples de entender,
ele é feito para a inserção de pessoas negras na universidade. Ele não
substitui a necessidade de repensarmos a educação de base, mas impede que a
disparidade racial do país aumente. O sistema de cotas não é outra coisa, senão
um sistema inclusivo. Também é leviano chama-lo de “esmola governamental”,
porque uma das obrigações do governo é justamente zelar pelo bem estar de seus
cidadãos, e os cotistas estão apenas utilizando um direito, que é o de estudar.
Errado é achar que, porque estas pessoas não tiveram 1.500 reais por mês
durante 15 anos, não merecem entrar pelos portões da frente do ensino superior.
O sistema de cotas incomoda porque mostra que dinheiro pode comprar coisas,
pode até comprar gente, mas não pode comprar humanidade.
E, por falar em conhecimento, um sem-número de artigos já explicaram a real eficiência desta solução, então não é difícil a compreensão.
E, por falar em conhecimento, um sem-número de artigos já explicaram a real eficiência desta solução, então não é difícil a compreensão.
Há também quem busque invalidar toda a experiência dos
cotistas, afirmando que a única solução correta e eficiente seria a reforma
total do ensino de base, apenas. Eu talvez preste atenção nisto no dia que
todos os pais puderem educar seus filhos com as mesmas condições econômicas, e
isso inclui os empregados de quem desqualifica os cotistas.