Por Dr. phil. Sônia T. Felipe
É pelo golpe do chicote que o forçam a mover-se. Desde
jovem. Escravizado. Passa o dia puxando a carroça carregada. Os cascos
firmam-se contra o asfalto, resvalam nos paralelepípedos plantados de forma
irregular, as lajotas deslocadas de seu berço, as poças d’água, as pedras que o
fazem torcer a pata. E ele evoluiu para galopar nos prados...
O peso é descomunal. O da carroça, feita de madeira maciça,
e o das rodas, feitas de ferro. Mas isso ainda não é tudo, não basta para os
humanos que o mantêm na condição de refém, de escravo. Há mais peso ali,
acrescentado ao da carroça. Ora é carga inerte, tijolo, telha, entulho, lixo.
Ora é carga viva. E não é pouca.
Cinco, seis, oito humanos se acomodam nos assentos,
tagarelas, aproveitando ao máximo o conforto da “carruagem”. Sobem nela e
sentam-se ali, como se estivessem em sua sala de visitas, sentados em seus
sofás. Sentam-se, felizes, porque ali a sala os leva a passear, como num passe
de mágica, e a tela não é de dois palmos, é amplíssima e eles são levados por
dentro dela a passear.
Não há ruído de motor de tração. A tração é silenciosa. Se
há algum ruído, ele vem do atrito das patas do cavalo sobre o asfalto, as
lajotas, os paralelepípedos, as pedras, as poças e buracos da rua. E os cavalos
puxam esse peso todo, que equivale ao, ou excede em muito, seu próprio peso. E
eles o puxam o dia todo.
O sol está forte. O calor desidrata. Mas ninguém está
passeando ali para se preocupar com a sede ou com o cansaço do cavalo. Todo
mundo se aboleta na carroça para curtir o passeio, as férias, para divertir-se.
E o fazem à custa do tormento do cavalo. Atado em aparatos de ferro, a começar
pelo que lhe atravessam sob a língua, órgão usado como sensor dos desejos do
boleeiro. Puxando o “freio” posto sob a língua do animal, o machucam, o fazem
sentir dor. Então, pela dor da puxada do freio, o animal para.
Uma dor ainda está ali, quando a outra lhe é provocada. É
preciso que ele saiba que agora precisa retomar a marcha pesada, puxando a
carga humana. E, atormentado pela dor dos músculos exauridos, pela
desidratação, pela fome, pelas ligas de ferro e couro que o atam à carroça, o
cavalo recebe um guascaço sobre o lombo, dado com um chicote feito de tiras de
couro, trançadas, ou não.
E o golpe desse chicote sobre seu couro o faz arrancar num
impulso. Não porque tenha entendido o desejo do carroceiro, mas porque a dor é
imensa e não há como ficar parado ao sofrer o golpe. Obviamente, por estar
amarrado fortemente à carroça carregada de humanos, ao tentar fugir, nesse
impulso que o leva a buscar não sofrer outra vez o mesmo golpe de chicote, o
cavalo puxa a carroça para frente. E segue puxando-a, pois se esmorecer levará
outro golpe. Os carroceiros fazem isso a ele todos os dias, o dia todo, por
toda sua vida, com o apoio da lei e o gozo dos usuários.
E, ao final do dia, ao ser liberado das amarras para passar
a noite, sofre novos castigos. Ou é a comida que não vem, ou vem pouca. Os
remédios para aliviar a dor dos machucados, dos golpes de chicote e das feridas
das correias que amarram seu corpo ao artefato pesado que foi forçado a puxar,
a dor das atrofias articulares, dos tendões lesados, dos nervos em frangalhos,
dos músculos enrijecidos, o alívio dessas dores, nunca vem, remédios para elas,
não, também.
E esse cavalo que levou gente bem vestida e perfumada a
passear pela cidade que o escraviza tem que dormir sem conforto algum, sobre
seus excrementos e urina não retirados dali enquanto ele seguiu mais uma jornada
de sofrimento.
No silêncio da noite fria, ventosa, úmida, quente, cheia de
mosquitos, moscas, excrementos, fome, sede, cansaço, reverbera o relincho que
esse animal já não consegue dar. Quebraram sua vontade. Quebraram sua altivez.
Na manhã seguinte, ele voltará a ser amarrado à carroça e a
puxará para levar turistas em festas, em férias, em folga, em liberdade, mas
seu pescoço já não consegue mais erguer-se, e não porque ele goste de olhar
para o chão, mas porque algo está errado com suas articulações, seus nervos e
tendões. Mas ninguém o vê. Ninguém presta atenção nele, ao subir para o assento
da carroça. É tradição.
Ninguém vê a dor que causa ao cavalo que o leva a deslizar
sobre paralelepípedos, lajotas, buracos, pedras, poças d’água, asfalto em
brasa. Ninguém vê nada. E ninguém se admira que o animal já não relinche.
Relinchar é falar. Falar, para quem? Doer e resignar é o que nossa liberdade de
escravizar cavalos deixa para eles. Resignar, em vez de relinchar. Mas isso vai
acabar! Já não há perdão para tanta barbárie em nome da tradição e do turismo!
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria
Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991),
fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC,
1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis
(1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa
(2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e
limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais(Boiteux,
2003); Ética e experimentação animal: fundamentos
abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima,
2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012);
Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma
questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão
abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da
vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento
animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc,
2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências
da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no
Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar
Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da
RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética
animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral.
Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da
discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e
orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do
Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica,
direcionando seus estudos para a dieta vegana.