O site Olhar Animal noticia uma virada na história humana.
Por força da lei, na França os animais serão considerados sujeitos de direitos
emocionais ou seres sencientes.
E a mudança será feita. Na França, os animais deixarão de
ser considerados meros objetos de propriedade pessoal dos humanos. Serão
tratados pela lei como sujeitos de direitos emocionais, portanto, como seres
sencientes. Ninguém poderá mais fazer o que bem entender a qualquer animal,
mesmo que se considere “seu dono”. Essa mudança abole o estatuto de objetos ao
qual os animais foram condenados indevidamente ao longo dos milênios. E o povo
francês (89%) a vê como boa.
Uma mudança dessa magnitude levou dois séculos e meio para
ser concretizada. Mas ela ocorrerá, sem volta. Assim como a abolição do
estatuto de objeto de propriedade ocorreu, libertando os escravos.
Em 1776 o doutor em Teologia, pastor da Igreja Anglicana em
Aberdeem, cuja graduação havia sido em Artes pela Universidade de Londres,
Humphrey Primatt lançou um pequeno livro, cujo título longo, no original,
rezava:A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sin of Cruelty to Brute
Animals (Uma dissertação sobre o dever de misericórdia e o pecado da
crueldade contra os animais brutos). Esse pequeno livro, reeditado em 1992 por
Richard D. Ryder, com as devidas revisões linguísticas da última edição que era
de 1834, traz agora o título curto: The Duty of Mercy, um livro com os
argumentos genuinamente revolucionários, que enfrenta a moral dominante, a que
condena os animais ao lugar de meras coisas, de objetos da propriedade humana,
como se eles não tivessem uma natureza psíquica, uma consciência, inteligência,
sensibilidade e linguagem. Como se a massa encefálica do crânio dos animais de
outras espécies houvesse sofrido uma falha na programação e fosse uma massa
gorda morta, sem função alguma. Em outras palavras, como se tivessem a
aparência de serem sencientes, mas fossem destituídos da senciência, uma falha
no design que Voltaire mostrou claramente não fazer sentido algum para os
propósitos da natureza, ao ironizar a tese de Descartes que afirmava a
in-consciência nos animais por conta de eles não falarem a linguagem humana.
Essa crença levou os humanos, especialmente os que ouviram a
baboseira inventada por Descartes sobre a inexistência da mente nos animais, a
crerem que os animais têm algo parecido conosco apenas na configuração externa:
um crânio com um cérebro lá dentro. Nada mais. Esse cérebro dos animais
não-humanos, com a mesma estruturação do cérebro dos humanos, no entender dos
filósofos, dos padres, dos juristas e dos demais cientistas, menos dos
defensores e protetores dos animais, que nunca duvidaram da existência da alma
e da consciência nos animais que viveram e vivem com eles, seria falhado,
destituído de consciência. Muito confortável para os que querem fazer ao corpo
dos animais o que bem entendem, desde farrear a experimentar, usurpar suas
secreções e matar. Enfim, a crença antropocêntrica especista elitista colocou o
corpo e o cérebro dos animais humanos acima de todos os demais na natureza.
As diversas religiões fizeram coro ao que interessava para
seus negócios particulares, afirmando que os animais não-humanos não têm a
mesma estatura dos humanos perante uma consciência maior. Não contaram que essa
consciência que desqualifica os animais de outras naturezas não é maior, é
menor do que a consciência que suporta a ideia da igualdade natural entre
humanos e não-humanos, no que diz respeito à capacidade de sentir dor e sofrer,
ou de sentir prazer e contentamento por estar vivo, pulsando.
Ao longo da história, sempre houve quem afirmasse a
igualdade da senciência em todos os animais. Entretanto, sempre houve quem
tivesse poder para abafar essas vozes dissidentes. As religiões foram
responsáveis pela desqualificação dos animais em suas doutrinas oficiais.
Santos da Igreja Católica defensores dos animais, por exemplo, foram abafados
por textos produzidos por Santos indiferentes aos animais ou até mesmo zoofóbicos.
Se São Francisco de Assis pregou o amor por todos os seres vivos, São Tomás de
Aquino pregou a supremacia dos humanos e os liberou para usarem os animais do
modo que melhor lhes aprouvesse. E isso foi seguido. Não há pecado algum em se
fazer o que se quiser contra qualquer animal, escreve Aquino, porque o ser
humano, sendo superior a qualquer animal, pode usá-lo para quaisquer
finalidades. Lastimável.
Entretanto, nos quatro primeiros séculos da nossa era, os
filósofos conhecidos como greco-romanos, Sêneca, Ovídio, Plutarco e Porfírio
afirmavam não apenas que os animais podiam sentir dor e sofrer, mas que eles
eram dotados de racionalidade, ainda que não nos moldes do que se conhece por
racionalidade na espécie humana, que, convenhamos, deixa muito a desejar na
maior parte de nós, algo afirmado também por Aristóteles no livro, Ética a
Nicômaco, escrito quatro séculos antes da nossa era. Somados, foram oito
séculos nos quais jamais os animais foram tidos como seres vivos vazios de
consciência.
A tese de que os animais não têm nada que se assemelhe à
senciência humana floresceu quando raiou a tal da Modernidade. E desde então,
com apoio da religião, do direito, da filosofia e da ciência, o inferno da
experimentação em animais não teve pausa, e os campos de concentração e
extermínio dos animais foram inventados para se criar animais em massa e suprir
com suas carnes, leites e ovos a dieta de seres que não nasceram para digerir
tudo isso e saírem ilesos da agressão que representa atormentar seus organismos
com restos mortais de outros animais ou suas secreções. Sim, as carnes, leites
e ovos têm nutrientes dos quais se nutre o organismo humano. Mas o organismo
humano também têm esses nutrientes. Apesar disso, ninguém aprovaria que nosso
corpo fosse usado para alimentar quaisquer outros seres, sejam lá de que
espécie, superior ou inferior à nossa, fossem. Ética e coerência têm que andar
juntas, quando o princípio moral é o da igualdade na consideração de interesses
semelhantes. E o interesse em não sofrer, não ser escravizado e não ser morto é
igual em todos os seres animados. Sem especismo eletivo ou elitista.
Os séculos de crueldade autorizada contra os animais, da
escravização dos animais, da experimentação em animais, da criação artificial e
matança de animais seguiram seu curso até nossos dias. A tratar os animais como
se fossem objetos destituídos da senciência, a capacidade de sentir dor e
prazer, de sofrer ou de fruir a própria vida, de cuidar de si e dos seus, de
ajudar os de outras espécies, foi o que se ensinou sobre os animais nas
melhores universidades do mundo. Toda essa negação foi um grande erro. Tão
aterrorizante para o aprimoramento moral da humanidade quanto o foi a
escravização dos seres humanos, abolida das leis somente no século XIX.
O século XX continuou seu curso do mal contra os animais,
incólume. Os defensores da senciência nos animais, pioneiros do debate no mundo
acadêmico, a exemplo do que o fizeram Peter Singer, Richard D. Ryder, Tom
Regan, Steven M. Wise, Gary L. Francione e tantos outros, foram considerados
quase como insanos, porque ousaram desmentir a tese da natureza insenciente dos
animais não-humanos. Mas foi o seu trabalho e o ativismo animalista inspirado
nele que deu força aos estudos e fez pressão sobre os cientistas que investigam
a consciência em animais humanos e não-humanos.
No livro da contabilidade moral, passamos para o século XXI
com nossa dívida para com os animais ainda no vermelho. Mas a pressão sobre a
ciência não parou de ser feita pelos filósofos e ativistas animalistas. No
início do milênio o debate foi introduzido no Brasil, que retardara a
consciência já robustecida na Europa e nos Estados Unidos desde a década de 60
do século XX.
Em 7 de julho de 2012, reunidos em Cambridge na Inglaterra,
cientistas de diversas especialidades da neurologia fizeram um Congresso
especial para debater a existência da consciência em humanos e não-humanos. Ao
final desse histórico congresso, na presença do físico Stephen Hawking, o autor
do best-seller,Uma breve história do tempo, cuja degeneração neurológica não
afetou a consciência e as habilidades cognitivas, os neurocientistas da
cognição e da computação, neurofarmacologistas, neuroanatomistas e
neurofisiologistas lançaram uma declaração, disponível na rede: Declaração de
Cambridge sobre a Consciência Humana e Animal, na qual assumem perante a
comunidade internacional que está comprovado pela ciência que todos os animais
são dotados de consciência, sensibilidade e capacidade de sofrer e de fruir,
além de sentir dor ou prazer [Ver FELIPE, Sônia T. (2012). Galactolatria:
mau deleite, p. 237].
Acabou-se a era na qual os animais são considerados meros
objetos andantes. No Brasil usa-se o termosemovente para designá-los, como
se fossem autômatas ou vivos-vazios, destituídos de mente. Agora, falta acabar
com a mentalidade rígida, estruturada por milênios nas inverdades que os
filósofos e os cientistas nos contaram sobre a de-mência ou a falta de
mente nos animais.
Quem, afinal, se portou como de-mente ao longo desses
milênios? Os animais sempre se portaram mostrando-nos que há algo neles, dentro
deles. Sempre fizerem o que puderam para que entendêssemos que eles têm alma e
que a linguagem dessa alma é específica, além de pessoal, não é a mesma da
nossa alma, nem igual em todos os indivíduos da mesma espécie. Nós estávamos
obnubilados pelas crenças antropocêntricas, especistas e hierárquicas, que nos
colocam em um patamar superior quanto à sensibilidade e consciência e nos
autorizam a usar e a abusar, a explorar e a matar os animais como se não passassem
de objetos sem alma, emborasemoventes, quer dizer, seres que se movem por conta
própria, mas, não tendo alma, possivelmente se movem como balões, inflados pelo
ar. Tanta inteligência humana para acalentar tais descalabros?
A França, em abril de 2014, numa virada política e moral sem
precedentes na história humana, dá o exemplo de derrubada das crenças
antropocêntricas especistas, ao propor que os conceitos que sustentam a
legislação que rege a interação e a posse de animais não-humanos sejam filtrados
de tal modo que nenhum animal seja mais considerado mero objeto de propriedade.
Na proposta francesa, o estatuto a ser concedido aos animais
é o de “seres sencientes”. Agora, na esteira da legislação aprovada na Suécia,
que condena o estupro de animais no mesmo molde em que o de humanos já é
condenado, e da legislação francesa, que abole as noções jurídicas que impedem
os animais de serem considerados em igualdade de condições com os humanos, no
que tange às questões de posse, uso, exploração, abuso e morte, dando aos
animais o estatuto de sujeitos de direitos emocionais compatíveis com a
senciência, é preciso que o Brasil dê também os seus passos para eliminar as
noções erradas que acalentamos sobre os seres semelhantes a nós. A única grande
diferença entre eles e nós é que nosso formato exterior não é exatamente como o
formato deles.
Indiferentes ao seu formato externo, os animais de todas as
demais espécies possuem, como nós a possuímos, uma mente, na qual tudo o que é
feito a eles, de bom e de ruim, é registrado emocionalmente, quer dizer, com a
memória da dor ou do prazer, levadas para seu arquivo subjetivo, exatamente
como ocorre conosco, em nossa mente.
Nasce, assim, a era dos Direitos Emocionais dos Animais, o
reconhecimento da necessidade de restituirmos aos animais os Direitos
Fundamentais dos quais jamais os deveríamos ter privado, tema sobre o qual fui
convidada a falar na Assembleia Legislativa de Vitória há exatamente um ano
atrás.
Para quem se interessa pelo tema, pode ler:
Para ver a notícia:
Sônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia
Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro
de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em
Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por
uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa
dos animais(Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos
abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima,
2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012);
Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma
questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão
abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da
vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento
animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas
e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética
contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da
ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal
(www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@
(Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas
biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista,
contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi
professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de
Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC,
1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta
vegana.